Num certo sentido, a retrospectiva do ano corrobora a da década. As novas tecnologias continuaram dando as cartas, mas tivemos gloriosas exceções - os filmes que ainda apresentam suntuosas imagens captadas em celuloide. Independentemente do processo de captação, o perigo, advertia Padilha, é achar que imagens incríveis podem substituir a boa dramaturgia. 'Vincere' reinventa Antígona, 'Toy Story 3' dá nova roupagem ao desfecho do western clássico 'Os Brutos Também Amam' (Shane) e, no caso de 'A Origem', o próprio título tem valor de esclarecimento. O cinema e a interpretação dos sonhos, segundo Freud, nasceram juntos e Nolan transformou em pathos as ferramentas de investigação freudianas. Num ano rico de ideias e formas, o Brasil fez história ao estabelecer novos recordes de participação no próprio mercado. Já virou lugar comum dizer-se, o que é verdade, que o mercado de cinema do País é formatado para a produção estrangeira. 'Tropa 2' não é apenas o filme brasileiro de maior sucesso de todos os tempos - o mais visto - como, ao ultrapassar 11 milhões de espectadores, se converteu também no número 1, incluídas as produções de Hollywood. Embora os críticos vivam dizendo que o sucesso de público não é a única ferramenta - o que eles dizem, na verdade, é mais incisivo, que não é a melhor - para se avaliar a qualidade de um filme, ninguém é louco de subestimar o extraordinário significado da vitória de Padilha e de seu 'Tropa 2'. O filme, além do mais, antecipou um movimento da sociedade e a invasão das favelas cariocas, numa operação policial/militar para erradicar o tráfico, dificilmente teria ocorrido sem o aval do capitão, agora coronel Nascimento da ficção. Viver à sombra, encaminhar-se para a luz - a busca da consciência. Por uma curiosa - estranha? - coincidência, o tema do ano virou metáfora da política brasileira, porque a presidente eleita (e que assume depois de amanhã) também terá de sair da sombra do atual presidente para dizer a que vem. Por falar em sombras, a mais terrível história de vingança do ano veio confirmar as qualidades que o público gosta de atribuir ao cinema argentino, no fundo lamentando que a produção brasileira não se assemelhe à do Prata. Um cinema de classe média, de testemunho, solidificado por virtudes de diálogo, interpretação e realização - 'O Segredo dos Seus Olhos', de Juan José Campanella. O desfecho de 'O Segredo' é puro horror - o torturador torturado, encerrado na própria miséria. Mas o filme de horror do ano, dos últimos anos, foi outro. 'A Rede Social', de David Fincher, usa a história do criador do Facebook para indagar sobre o aspecto mais sinistro desse desenvolvimento tecnológico que, até aqui, temos elogiado. As novas tecnologias - o digital - democratizaram o acesso à cultura e à informação. Hoje em dia, qualquer um consegue fazer um filme por dois vinténs, difícil é conseguir uma plataforma parta ele - a menos que seja a virtual. Põe no YouTube, divulga pelo twitter. Assim se criam os fenômenos na atualidade. 'A Rede Social' vai além do terrível. O mundo novo é admirável ou assustador? O hacker que criou o Facemash, base do Facebook, atropela o humanismo, exibe sua falta de ética ao expor a namorada e chega ao final do filme como o grande babaca que é. Em vez de ser execrado em praça pública, vira bilionário. Antonio Gonçalves Filho definiu Mark Zuckerberg como um Cidadão Kane autista que reflete o hedonismo vicioso da juventude do século 21. A crítica, evidentemente, não é aos jovens, mas à sociedade amoral e competitiva que os impulsiona, mais do que estimula, a ser como são. Neste sentido, não houve outro filme tão poderoso quanto 'A Rede Social' em 2010. Contra essa nova barbárie, um pouco de inocência não faz mal - 'Um Doce Olhar', do turco Semih Kaplanoglu, é colírio contra tanta impureza que nos assalta. Só não foi, disparado, o melhor filme sobre a infância do ano porque houve 'O Pequeno Nicolas', com que Laurent Tirard deu vida aos personagens de Sempé, e também 'Antes Que o Mundo Acabe', uma joia de delicadeza da cineasta Ana Luiza Azevedo, que fala, com imensa sensibilidade, sobre o mito de passagem e a paternidade. Esse é sempre um temas essencial. Posto que a família é a célula mater da organização social, a figura do pai coloca sempre em discussão a autoridade. Do Chade, raridade - um filme africano! -, veio 'Um Homem Que Grita', de Mahamat Saleh Haroun. Um pai rival do próprio filho. Outra tragédia familiar, num ano que foi pródigo nelas.