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Uma geléia geral a partir do cinema

Mais Saraceni

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Depois da peça, fui jantar ontem (no Almanara da Oscar Freire), mas já querendo voltar para casa para postar alguma coisa sobre a morte de Paulo César Saraceni. Vejam como são as coisas. Havia saído de uma peça que discute a questão racial no Brasil - 'Namíbia, não' - e, simplesmente, me esqueci de que, no começo de sua carreira, logo depois de 'Porto das Caixas' e antes de 'O Desafio', Saraceni fez o média 'Integração Racial'. Temo ter sido duro com Paulo César, mas eu o admirava, uma admiração que extrapolava o artista - que, insisto, nunca me satisfez integralmente - e atingia o homem. Um sujeito que foi jogador de futebol, conviveu com Otávio de Faria e Lúcio Cardoso e virou diretor (autor) de cinema não é pouca coisa. Confesso que, apesar da correria em que vivo - em que gosto de viver -, sinto que ando com muito tempo ocioso e tenho vontade de ocupá-lo. Penso, volta e meia, em escrever um livro, ou uma série de livros, nos moldes da viagem de Martin Scorsese pelo cinema norte-americano. Imagino - minha viagem pelo cinema brasileiro, o italiano, o francês, o norte-americano, o sueco, o japonês... Poderia fazer isso no blog, embora esteja sempre viajando nestes posts. Mesmo considerando os filmes de Paulo César insatisfatórios, existem momentos do seu cinema que fazem parte das minhas lembranças inesquecíveis. Citei ontem Oduvaldo Viana Fillho que conduz Isabela pela casa em ruínas de 'O Desafio', uma metáfora da situação da esquerda, após o golpe militar. Poderia ter incluído a entrada de Timóteo, vestido de mulher, no velório de Nina, em 'A Casa Assassinada'. Saraceni quis fazer 'A Crônica' em 1961, mas não conseguiu. Terminou fazendo 'Porto das Caixas', com Irma Alvarez e o roteiro de Lúcio Cardoso. E, ainda antes da 'Crônica', que virou só 'A Casa Assassinada', fez 'Capitu', baseado no 'Dom Casmurro', de Machado de Assis, com roteiro de Paulo Emilio Salles Gomes e Lígia Fagundes Telles. Não é um filme do qual guardo uma boa lembrança. É curioso, mas lembro sempre da resenha publicada no Guia de Filmes do antigo INC, Instituto Nacional de Cinema. Não me lembro de quem a assinava. Era restritiva. Falava no filme como um ato de coragem - todos os desafios que o autor teve de enfrentar: o livro, a produção etc - e concluía que o suicídio também não deixa de ser um ato de coragem. Posso simplificar, mas Saraceni e seus colaboradores transformaram um  romance de dubiedades e sutilezas - Capitu traiu ou não? - num filme afirmativo, no qual ninguém tem dúvida de que ela traiu e Bentinho era um t0lo que merecia ser traído. Não creio que Saraceni tenha, ao longo de sua carreira, feito o grande filme que sonhou e para o qual se preparou, cursando o Centro Sperimentale, de Roma. Ele amava Roberto Rossellini, mas acho que, no fundo, seu temperamento o aproximava mais de Luchino Visconti. Suas tentativas de representação do povo enfatizam a crise existencial, mais que a infelicidade social (e isso é Antonioni, em 'Porto das Caixas'), mas a tragédia burguesa, para a qual Otávio de Faria o preparou, e a derrocada das grandes famílias (à Lúcio Cardoso) são uma coisa assim 'viscontiana'. O carnaval o atraía, mas seu espírito era mais quarta-feira de cinzas (em 'Amor, Carnaval e Sonhos', até mesmo em 'Natal', quando retratou o lendário dirigente da Portela, com um só braço). Esse tom menor, atravessado, do carnaval se faz presente no seu filme (intimista) sobre a banda de Ipanema, pelo qual tenho (nada) secreto encantamento. Enfim, espero ter sido mais justo com Saraceni. Estou no jornal e, a caminho daqui, admito que vim 'viajando'. Lembrei-me de Farö, daqueles minutos que passei silencioso diante da lápide, muito simples, de Ingmar Bergman. Aos 66 anos, já estou naquela idade em que os amigos e os objetos da minha admiração estão se indo. Isso me entristece, claro, mas dos artistas fica sempre a obra. Saraceni nunca fará o grande filme que eu, talvez, de forma muito íntima e pessoal, cobrasse dele. Mas, na sua obra imperfeita, existem esses momentos que me tocam. E, por eles, lhe sou grato.

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