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Uma geléia geral a partir do cinema

Caparaó

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Meu colega João Luiz Sampaio, o mais jovem crítico de música erudita do País (tem 26 anos, só), é leitor assíduo do blog. O João faz seus comentáruos diretamente para mim, na redação do Estado. Há pouco, ele tirou sarro - disse que eu já podia voltar, porque havia um monte de comentários para suprir minha carência. Li os 40. Prometo responder a alguns, especificamente, aquele que pede que eu próprio faça um comentário sobre como (ou se...) mudei desde que comecei a escrever em Porto Alegre. Estréiam hoje dois filmes brasileiros na cidade. Por uma questão de espaço, privilegiamos, na edição de hoje do Caderno 2, o documentário Caparaó, de Flávio Frederico. A ficção Não por Acaso, de Philippe Barcinski, ficou para amanhã. Gosto muito de Caparaó. Nos últimos anos, o cinema brasileiro tem dedicado muitos filmes ao tema da guerrilha, durante a ditadura. Gosto, integralmente, de poucos desses filmes. Encontro sempre um defeito aqui, outro ali. Se tivesse de escolher apenas um documentário e uma ficção, ficaria com Caparaó e Quase Dois Irmãos, da Lúcia Murat. Por ter sido guerrilheira e presa política, Lúcia faz uma leitura muito interessante daquela época. A interação, nas prisões do regime militar, entre ex-guerrilheiros e criminosos comuns, que viriam a fundar o Comando Vermelho, mereceu dela uma análise muito séria. E Quase Dois Irmãos é muito legal. Mas quero falar de Caparaó. Escrevi, na edição de hoje do Estado, que seria preciso um David Lean para contar a história de Caparaó como ficção. Estava pensando nos épicos intimistas do grande diretor, com aqueles personagens alienados, ou alienando-se, nos ventos da revolução, tema de Lawrence da Arábia, de Doutor Jivago, A Filha de Ryan e Passagem para a Índia. Só um parêntese - Antônio Gonçalves Filho havia me dito que comprou, nas Americanas, o DVD do último por apenas R$ 12,90. Ontem conversamos bastante sobre o filme, que ele reviu. Passagem para a Índia é maravilhoso. A cena em que Adela (Judy Davis) se perde na floresta e vai parar no templo em ruínas, com todas aquelas inscrições eróticas, é antológica. Ela fica perturbada. Foge. Quando lhe perguntam o que houve, responde - 'Nada'. Poderia ter dito - 'Tudo'. A cena, por si só, resume o que é o cinema. De volta a Caparaó. Hoje me dei conta de que o filme é muito mais fordiano. Viva John Ford! A grandeza dos derrotados. Me emocionou muito ouvir, deles próprios, a história daqueles caras que, mesmo sabendo que não teriam chances, fizeram a primeira guerrilha contra a ditadura. Por que uma pessoa, sabendo antecipadamente que vai perder, se lança a uma empresa que vai mudar e até destruir sua vida? John Huston construiu toda uma obra em torno do assunto - a validade do esforço e a inevitabilidade da derrota. Os soldados e marinheiros de Caparaó, não mais que 20, não viraram grandes personagens da história brasileira recente. Muitos ex-guerrilheiros viraram políticos e intelectuais de peso. Eles permaneceram anônimos, como a própria experiência da guerrilha em Caparaó, aquela sobre a qual menos se fala no País. Ao pesquisar, Flávio Frederico encontrou um velho texto na imprensa da época, definindo aqueles caras como 'o incrível exército de Brizaleone', um pouco porque o movimento seria financiado com o ouro de Moscou, através de Brizola e da conexão cubana, mas também porque teriam sido desastrados como aquele outro exército, o de Brancaleone, numa comédia que virou clássica de Mario Monicelli. Me emocionou muito a história de todos eles. Por que uma pessoa arrisca tanto, arrisca tudo? Porque é preciso, porque é direito, por uma questão de consciência, essa palavrinha tão desgastada. Os ex-guerrilheiros de Caparaó continuam humildes, mas íntegros. Os olhos brilham quando falam no episódio que, sob certos aspectos, foi uma derrota, mas deu sentido a suas vidas. O próprio conceito de fracasso é relativo. Nós que fomos belos e amamos tanto a revolução, poderiam dizer. Não vejo nada mais fordiano do que essa grandeza humana que se encontra na derrota. Desse estofo são feitos alguns dos melhores personagens de John Wayne no cinema de John Ford.

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