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Uma geléia geral a partir do cinema

Bolinhos de chuva para Mauro Alice

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Acabo de enterrar o Leslie Nielsen para o 'Caderno 2' de amanhã (e também aqui no blog) e me caiu a ficha de que, até agora, não falei nada sobre a morte de Mauro Alice. Foi no último dia 23, aos 85 anos. Soube que havia morrido em Brasília, quando o Festival de Cinema Brasileiro lhe prestou uma breve homenagem, na noite de sexta-feira. Na verdade, foi apenas lida uma nota informando da morte. Tive pouco contato com Mauro Alice. Devo ter ido umas duas ou três vezes ao apartamento dele, em Higienópolis, para entrevistá-lo. A última foi quando foi homenageado na Semana ABC de Cinematografia, em 2005. Antes, tinha sido na estreia de 'Carandiru', em 2003, quando fiz uma longa entrevista com ele. Mauro Alice montou vários, senão todos, os filmes de Hector Babenco. O que mais me lembro dele, neste momento, é da voz. Mauro Alice tinha uma fala muito mansa. E, sempre que o vi, estava com um sorriso. Tendo começado com o lendário Oswald Hafenrichter, na Vera Cruz, montou desde filmes de Mazzaropi até obras de Walter Hugo Khouri e Babenco. Na sua extensa carreira, iniciada em 1953, recebeu apenas dois prêmios - um Saci, pela montagem de 'A Primeira Missa', e a Coruja de Ouro, por 'Anjos da Noite'. Na sua simplicidade, nunca se queixou nem se achou subestimado por isso, mas receber o Prêmio ABC foi um reconhecimento que o emocionou muito. "E a festa é linda", ele me contou. "É uma oportunidade rara de encontrar pessoas, de trocar idéias, de confraternizar. Guardadas as proporções, encontrei essa mesma efervescência quando fui ao Oscar, com O Beijo da Mulher Aranha", me disse. Fui agora ao Doc Center do 'Estado' em busca de uma história que Mauro Alice me contou e achei fascinante. Ele guardou sempre a lembrança dos dias de chuva em Curitiba, quando, garoto, comia os bolinhos de frigideira preparados por sua mãe. Por isso mesmo, para ele, uma das grandes cenas de 'Noite Vazia', o clássico de Khouri - a maior? -, era justamente o flash-back evocativo da infância da prostituta interpretada por Norma Bengell. Ela também se lembrava dos bolinhos de chuva que sua mãe fazia. Ao som do óleo estourando na frigideira superpõe-se, no filme, o da chuva. Mauro Alice não foi só um montador visual. Também possuía, como poucos, no Brasil, o segredo da edição sonora. Aprendeu-o na Vera Cruz, com seu outro mestre (além de Hafenrichter, Rex Endsleigh. Embora o post esteja longo, não resisto a contar outra história de Mauro Alice. Houve um momento de 'Carandiru' em que Babenco e ele se encontraram diante de uma versão do filme com quase quatro horas (3h40). Começaram a cortar. Babenco decidiu que ia tirar do filme tudo aquilo que poderia fazer de 'Carandiru' um filme de presídio no estilo hollywoodiano. Toda a dinâmica interna, cotidiana, da penitenciária foi suprimida. Havia um detalhado café da manhã com centenas de presos, que demorou para ser filmado. Nem um plano foi aproveitado. Mauro Alice lamentava principalmente o corte das cenas que contavam a história de Ezequiel, o personagem interpretado por Lázaro Ramos. Babenco filmou toda a história de Ezequiel e Mauro Alice gostava particularmente do personagem porque ele fugia um pouco do perfil dos demais. Ezequiel não era um criminoso típico. Surfista, havia se envolvido com drogas e participou de um assalto. Levado ao Carandiru, sua história, lá dentro, virou uma sucessão de azares. Babenco, ao apresentar a equipe de 'Carandiru', na pré-estreia do filme, se referiu a Mauro Alice como um sujeito com quem se podia aprender sempre. Não sei se Babenco falava só do profissional. De minha parte, do pouco que convivi com ele, acho que se podia aprender em tudo, até, e principalmente, na vida.

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