Foto do(a) blog

Uma geléia geral a partir do cinema

Adeus às ilusões

PUBLICIDADE

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

E a retrospectiva de Vincente Minnelli - cinema de música e drama - terminou hoje no CCBB. Na sexta, havia visto 'Herança da Carne', Home from the Hill; no sábado, ontem, 'Brigadoon', A Lenda dos Beijos Proibidos; e, há pouco, 'Adeus às Ilusões', com aquela trilha magnífica de Johnny Mandel, incluindo a canção 'The Shadow of Your Smile', com letra de Paul Francis Webster. Impressionou-me a construção operística, num crescendo dramático, de 'Herança'. Minha maior decepção em toda essa programação foi 'Brigadoon', que, no entanto, tinha tudo para ser 100% minnelliano. Os dois caçadores que entram no mundo de sonho de Brigadoon, cidade que desperta por um dia a cada 100 anos, proporciona o tipo de choque entre realidade e fantasia, ou sonho, que tanto fascinava Minnelli. Mas o filme me pareceu desastroso, ou quase. Fui à autobiografia de Minnelli, 'Tous en Scène', e me consolou saber que ele não tinha muito apreço por 'Brigadoon' e só aceitou fazê-lo porque foi chantageado pelo produtor Arthur Freed, o único que acreditava no projeto. Face às reticências do diretor, Freed enviou-lhe um telegrama de Joseph Ruttenberg, que dizia que, por amizade a ele, e só pela amizade, aceitava assinar a direção de fotografia. Depois disso, Minnelli, que tanto devia a Freed, não teve como dizer não. Mas ele não acreditava no projeto, detestava o cinemascope, que lhe foi imposto, e a gota d'água, o verdadeiro pesadelo, foi quando o estúdio desistiu de filmar na Irlanda e construiu a cidade de Brigadoon em Culver City, onde ficava a Metro. O cenário era gigantesco, possibilitando que a câmera fizesse movimentos de 360 graus, mas Minnelli argumentava que uma fantasia como aquela só faria sentido se fosse filmada em ambientes naturais. Não houve jeito. Para complicar, o próprio Gene Kelly, como o protagonista, não gostava da ideia de transformar um espetáculo cantado - a origem da peça - em outro dançado. De volta da França, ele estava convencido de que o musical estava com os dias contados e dava a impressão de querer se livrar, antecipadamente, do 'defunto'. Com raros momentos de exceção, o filme não funcionou para mim, ao contrário de 'Adeus às Ilusões', The Sandpiper, que foi uma (re)descoberta. Para o bem da verdade, o próprio Minnelli confessava que nunca ficou muito satisfeito com o filme. Ele achava o roteiro de Dalton Trumbo e Michael Wilson muito pretensioso, mas eu gosto de todas aquelas discussões filosóficas em que está embasado, sobre a origem do homem e os limiotes da sua liberdade, estabelecidos pelo convívio social. Trumbo e Wilson, como esquerdistas de carteirinha, haviam conhecido o inferno no macarthismo e agora professavam sua fé no homem e na sociedade. Minnelli também não gostou nem um pouco do clima de histeria no set, quando a produção se deslocou de Big Sur para um estúdio na França. Elizabeth Taylor e Richard Burton ganhavam tanto dinheiro que, para escapar ao fisco, não podiam trabalhar mais do que quatro semanas nos EUA. Na Europa, foi impossível controlar o assédio da imprensa à dupla. A própria história desagradava a Minnelli porque lhe parecia uma atualização da saga do reverendo Davidson e de Sadie Thompson (na peça 'Chuva'). Mas eu amei, e tudo perdoei, inclusive as convenções dos figurinos de Liz, assinados por Irene Sharaf, e as poses em que Minnelli a coloca, sempre deitada, como a Maja, em momentos decisivos do drama (e dos diálogos). Aquilo é muito brega, mas dá para perceber que ela amava Burton, apaixonadamente. Ele gostava tanto do projeto que, num determinado momento, chegou a querer dirigí-lo, mas o estúdio não deixou. William Wyler foi chamado e declinou. Minnelli topou porque estava fascinado pelo casal e suas motivações. Liz queria interpretar essa mulher livre e, no fundo, pensava ser a própria Laura, desafiando convenções. Burton queria ser o pastor que supera suas inibições pela força do amor. Ambos estavam pessoalizando os personagens. O filme é a história de uma reconciliação. Vai na contramão de 'Brigadoon'. É preciso viver com a realidade e adequar os sonhos à medida humana, mas sem abrir mão deles. É o filme mais sereno de Minnelli ­- mesmo a antissocial Laura aprende a viver em sociedade. Não existe essa coisa sonhada, o paraíso absoluto, destituído do homem. Mesmo no mundo 'perfeito' de Brigadoon havia a serpente, o jovem exaltado que queria partir, embora isso implicasse no risco de destruiição do equilíbrio sobre o qual repousava o sonho coletivo da cidade perdida na bruma. Em 'Adeus às Ilusões', a pintora que se recusa a retratar o homem nas telas finalmente o introduz em suas criações, e ele é o menino, seu filho. Sempre a criança, no cinema de Minnelli, e madura. Amei esse ciclo e todo dia, toda noite, descendo por aquelas ruas para cruzar o Anhangabaú - sem medo de tanta gente debaixo das marquises ou parada em grupos que eu tinha de cruzar, no meio da rua -, pensava sempre em meu amigo Jefferson Barros, que tanto amava Minnelli. Lembro-me da belíssima análise que ele fez da abertura de 'Adeus às Ilusões' e de como todas aquelas cenas, até que o menino mata o cervo e é levado perante o juiz, com a mãe, representavam uma ideia de responsabilidade e construção social. Hoje em dia, se as coisas não são explícitas - como um letreiro piscando -, ninguém percebe mais nada. Pois não houve críticos que, fazendo o inventário do cinema pós-11 de Setembro, omitiram a trilogia de Steven Spielberg? Claro, não estava escrito que era sobre isso e, para descobrir, eles teriam de pensar fora dos estreitos limites de suas convicções. Arre!

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.