Assim que Reginaldo chegou ao quarto andar - o batismo do piano é uma homenagem a Sir Elton John, que na verdade se chama Reginald Kenneth Dwight - ninguém em minha pequena família sabia tocar. Helena, 9 anos, fazia aulas um tanto enfastiada, sem nenhum sinal de que teríamos ali um novo Mozart, e seu irmão, Dudu, não parecia seduzido por outra coisa que não fosse tirar 'Hurt', de Johnny Cash, ao violão. Esquecemos com o tempo, mas os 15 anos nos trazem isso. O preto se mistura ao branco e o mundo começa a ficar indecifravelmente cinza, longe das cores quentes que nascem por trás dos acordes de Elton John. Um frio começou a me tomar todas as vezes em que passava pela sala. Reginaldo já era um desafio, o silêncio que não poderia existir, a música que precisava ser extraída para não morrer naquele corpo de madeira maciça. O piano não poderia se tornar um caixão.
Aprender a tocar três acordes de piano aos 44 anos sem professor e com a memória de um besouro foi minha maior conquista em muitos anos. Cheguei ao fim da música em um mês e me encorajei a partir para outra, 'Your Song', com um prazer que me fez pensar que Reginaldo era mesmo um ser vivo, agoniado por uma alma que lhe tirasse a mordaça. Ao mesmo tempo, percebi Helena acanhada, sentindo-se culpada por não atender à expectativa do pai que havia levado um piano para a sala de casa sem negociar com ninguém. Depois que eu me divertia, ela se ajeitava no banquinho com o ânimo de quando se senta à mesa para fazer lição de matemática. A música, para Helena, se tornava um tormento, uma série de exercícios rítmicos que precisava praticar ouvindo o estalar de um metrônomo marcar o tempo do qual jamais poderia sair, um sequência de notas que precisava encontrar mediunicamente em um teclado de duas cores, sentindo-se derrotada a cada vacilo, chicoteada por cada erro.
A voz de Hermeto Pascoal surgiu enquanto Helena começava a chorar diante de Reginaldo: "Eu senti antes de aprender, e fui aprender apenas para entender o que eu sentia." Era isso. Coloquei Helena no colo e disse que, a partir daquele momento, o piano seria o nosso brinquedo. Com o gravador do celular ligado, ela começou a brincar de compor, tocando a tecla em que suas mãos caíssem primeiro, sem saber se chocaria intervalos de segunda menor proibidos pelos cursos de improvisação ou misturaria compassos binários a ternários que fariam inveja a Dave Brubeck. Helena começou a criar frases pequeninas com repetições de células rítmicas que davam sentido mesmo quando o som não era a resolução que meus ouvidos esperavam. Ela sorria no final, ansiosa para dar um nome a cada criação antes de enviá-la para a mãe pelo WhatsApp. A primeira se chamou 'Pianos e Pianos'. A segunda, 'A Casa do Pai'.
A imagem de Helena se divertindo com Reginaldo me faz pensar, todos os dias, no que foi feito do pensamento criativo através dos anos. Ao organizá-lo com regras, eliminamos qualquer possibilidade de que ele seja livre e, portanto, criativo. Hermeto tem dito isso há anos, mas não percebemos porque sempre temos vontade de sorrir com tudo o que Hermeto diz. Grandes instituições de música formatam os improvisos de seus alunos com regras seculares. A harmonia está organizada em campos harmônicos inquestionáveis, os solos devem seguir escalas determinadas. "Isso não é improvisar, é repetir padrões", vem Hermeto de novo. "Improvisar é criar na hora, é tomar susto e provocar susto."
Elton John e qualquer músico pop que você mencionar aqui tem seu pensamento criativo formatado assim, dentro das regras proibitivas da música ocidental que, diga-se, funcionam que é uma beleza desde o século 18. Só penso que, com as crianças, bem que poderia ser diferente. Até que elas chegassem a esse estágio inevitável da domesticação do que deveria ser indomável, cursos e professores deveriam aproveitar o único momento da vida em que não temos filtros, padrões nem amarras e que não queremos ser outra coisa se não nós mesmos. Desde que Reginaldo chegou naquela casa, nunca pensei em usá-lo para criar meus Beethovens domésticos. Que sejam o que quiserem ser, mas sem medo de seguir seus instintos. Helena pode voltar um dia a ter aulas, mas só depois de brincar muito com Reginaldo.