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Crítica e crônica

A ressurreição de Tom Petty - e que esse texto não se desfaça em um segundo

Coveiros e jornalistas são as duas únicas profissões do mundo capazes de enterrar pessoas. E as perguntas feitas em uma redação de jornal, neste momento difícil, devem se parecer muito com as que são trocadas entre agentes de necrotério. "Qual o tamanho do morto?" "Ah, esse é dos grandes." "Vamos enterrá-lo bem, então. De que espaço precisamos?" Nesses mais de vinte anos de redação, realizei de enterros em nota rasa a grandes cortejos fúnebres. Gritei por Michael Jackson o clássico "parem as máquinas", adiantei mortes em cadernos especiais que rezei para que nunca fossem publicados e, por uma única vez, matei um homem que, graças a Deus, não morreu até hoje.

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Por Julio Maria
Atualização:

Tom Petty em show de 2008, nos Estados Unidos. Reuters /Jeff Haynes Foto: Estadão

Deuses e jornalistas são as duas únicas profissões do mundo capazes de ressuscitar pessoas. E eu acabo de assistir a um ressurreição à minha frente, a três palmos diante dos meus olhos. O morto era um homem loiro, 66 anos, guitarrista e cantor. Seu nome já estava no obituário: Thomas Earl Petty, ou Tom Petty, líder da banda Heartbreakers. É ele também um dos meus heróis, dos poucos que ficaram em primeiro lugar na minha lista interna das dez maiores aderências sonoras cerebrais por 36 semanas consecutivas com 'Handle With Care', que ele cantava com os Traveling Wilburys nos anos 90, banda que dividia com Bob Dylan, George Harrison, Jeff Lyne e Roy Orbison. Muitos assistem ao DVD 'Concert for George', uma homenagem devastadora a George Harrison, para ver Eric Clapton e Paul McCartney. Eu sempre assisti para ver Tom Petty.

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A primeira morte de Petty foi às 16h11, horário do Brasil. Ele havia sido encontrado em sua casa de Malibu, nos Estados Unidos, sem batimentos cardíacos nem respiração. Ou seja, para os jornais, tecnicamente morto. A notícia chegou rápido e muitos sites passaram a replicar a informação para não ficarem para trás. Sua imagem ganhou postagens chorosas de Facebook compartilhadas por quem o conhece e por quem ainda não faz noção de quem seja Tom Petty. Assim como as condenações sumárias de pessoas sobre as quais nada sabemos, as mortes também precisam de adesão instantânea no grande tabloide das fake news. É o último fio de vida participativa que sustenta as existências sorumbáticas.

O TMZ deu então os primeiros sinais de que a morte de Tom Petty poderia não ser tão mortal assim. Segundo esse site norte-americano que ganhou credibilidade fazendo com exclusividade o maior enterro do mundo pop do século ao anunciar em primeira mão, no dia 25 de junho de 2009, que Michael Jackson não estava mais entre nós, a família de Petty já tinha decidido desligar os aparelhos, mas ninguém sabia a que horas isso poderia acontecer. A concorrente CBS, por sua vez, dizia que a polícia de Los Angeles confirmava a morte. E a polícia de Los Angeles passou a dizer que, se havia algum morto, não seria ela quem daria a tal notícia. Os mesmos sites que noticiaram a despedida passaram a sentir tremedeiras, olhando para Tom Petty como um temível Lázaro, prestes a se levantar e a andar sobre suas carreiras. Eu rezo para que ele ande, mas vivo, sempre estará.

Sempre pensei ser a morte o único furo jornalístico que não compensa ser perseguido por um repórter. A única notícia melhor de se dar por último. O único erro que não será perdoado. Ao contrário de deuses e coveiros, jornalistas fazem enterros sem corpo presente, o que frequentemente lhes abre um portal para o inferno. E eu vivi o meu próprio no final dos anos 1990.

Por alguma razão, em alguma matéria para o extinto Jornal da Tarde, que meu departamento de defesa interno despachou para as profundezas da inconsciência, escrevi que "se vivo fosse, Nelson Sargento certamente estaria feliz...". Antes que alguém me contasse que Nelson Sargento seguia vivo e feliz, o alarme soou nas minhas entranhas quando eu já estava longe, em casa, tentando pegar no sono. Eu havia trocado Nelson Cavaquinho por Nelson Sargento.

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Assim que cheguei na redação no dia seguinte, depois de uma noite em branco, abri o jornal com medo do que sairia das páginas e escondido de qualquer testemunha. A frase maldita continuava lá. Confesso que sair por São Paulo comprando todos os jornais foi algo que passou pela cabeça, mas meu salário só garantiria o estoque de duas ou três bancas. Num tempo em que os enterros eram perpetuados em páginas de papel, ainda não haviam inventado a ressurreição no jornalismo. Esperei pelo pior e ele não veio. O RH da empresa não ligou no meu ramal e nenhum leitor enviou cartas à redação. Fui para casa e me senti mais deprimido. Nelson Sargento precisava ser ressuscitado dos vivos, não dos mortos.

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