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Música clássica... E um pouco de tudo

Opinião|Turandot: amor e fúria

Ópera de Puccini foi apresentada no Festival do Theatro da Paz, em Belém do Pará

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Foto do author João Luiz Sampaio
Atualização:

Talvez soe estranho iniciar um texto sobre Turandot justamente pela parte não escrita por Puccini, que morreu antes de poder terminar a ópera. A tarefa acabou nas mãos de Franco Alfano mas, até onde se sabe, ao menos no que diz respeito ao texto, o compositor deixou instruções claras o suficiente para explicitar o que pretendia com o dueto final entre Turandot e Calaf. Em uma série de anotações, escreve a certa altura: "E então, Tristan". Puccini, ao que tudo indica, imaginava um dueto que pudesse rivalizar, em tamanho e intensidade, com o de Tristão e Isolda, escrito por Wagner. Há mais do que apenas meio século de distância entre as duas óperas. Mas, ao menos na inspiração, elas se aproximam, com duetos que tratam da redenção pelo amor.

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Em Wagner, o contexto torna impossível a concretização do sentimento entre Tristão, cavaleiro da corte do Rei Mark, e Isolda, sequestrada por ele, espólio de guerra prometido ao monarca em casamento. A poção do amor, no entanto, desfaz o ódio entre os dois protagonistas. E, longe do mundo real, eles buscam na noite, ao longo do dueto do segundo ato, o refúgio para uma paixão que assume contornos schopenhaurianos: o encontro dos amantes simboliza a destruição do indivíduo em favor da união incondicional dos dois. E a noite eterna, a morte, se transforma, assim, em caminho para a concretização de um ideal não apenas de amor mas de desconstrução e reinvenção do ser por meio do desejo.

Eliane Coelho como Turandot Foto: Estadão

Em Puccini, o cenário se inverte. A possibilidade de vivenciar o amor chega com o nascer do dia. Mas, mais importante, aqui não há poção. A história dos dois é construída ao longo de toda a ópera sob o signo da violência. Quando Turandot coloca os três enigmas a Calaf, esperando que ele falhe nas respostas, busca a morte daquele que ousou tentar conquistá-la. Sua obsessão é por evitar a entrega a um homem. A violência de Calaf, por sua vez, é dupla. Seu amor precisa se impor perante o desejo de Turandot - e nesse vale até mesmo o silêncio enquanto a jovem Liù é torturada e morta a mando da princesa. Liù encarna uma das obsessões do teatro pucciniano, a mulher que se sacrifica em nome do homem que ama. Mas aqui é mero joguete na relação de amor, ódio, obsessão e fúria de Turandot e Calaf. Se há amor entre os dois, é um amor violento, construído não da junção simbólica de dois indivíduos que abrem mão de si próprios, como em Wagner, mas sim do desejo de destruição do outro. É por isso que, do ponto de vista teatral, o momento em que Turandot aceita Calaf como manifestação pura do amor - "Il suo nome è amor" -, ao final do dueto, soa artificial, retorno a um ideal romântico que, ao longo de toda ópera, é questionado.

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A artificialidade é um elemento que, em Puccini, não pode ser deixado de lado. Em Turandot, há vários exemplos. Fico com apenas um. No primeiro ato, bastam poucos compassos para que, após ver pela primeira vez a princesa, Calaf se tome de paixão incontrolável, prontamente dizendo a seu pai, Timur, o quanto sofre por conta dela. Isso não significa, no entanto, diminuir a importância da obra de Puccini, apenas colocar a ênfase no lugar certo, ou seja, na música, "na pulsação do espírito sob as palavras, o non so che que pede a música, essa arte divina que começa exatamente onde as palavras terminam", segundo o próprio compositor.

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É na música de Turandot, com sua orquestração inteligente, texturas, contrastes, evocações, que a história de fato acontece, em todas as suas contradições e simbolismos, que se falam do século 19 também se misturam ao século 20. O que leva a um paradoxo curioso: entre as óperas do compositor, esta é a que mais costuma inspirar concepções realistas. E, na montagem apresentada na semana passada pelo Festival do Theatro da Paz, isso tornou-se um problema.

Em seus trabalhos, o diretor Caetano Vilela costuma construir narrativas coesas a partir da mistura de elementos que extrapolam e ressignificam a unidade entre texto e música proposta pelos compositores. Seria exagerado dizer que, aqui, ele segue em outra direção, buscando corte mais realista. O diretor, na verdade, trabalha mais uma vez com referências múltiplas, como o tangram, quebra-cabeça chinês que, em suas múltiplas formas possíveis, simboliza a transformação de Turandot; ou o barroquismo das cabeças decepadas. Mas, somadas aos figurinos, elas acabam se perdendo em uma movimentação cênica e um aspecto visual tradicionais demais, incapazes de dar voz a uma leitura simbólica. E, no primeiro ato, isso vem acompanhado de problemas também na leitura do maestro Miguel Campos Neto, que, à frente da orquestra e do coro (preparado por Vanildo Monteiro), opta por força em vez de intensidade e passa por cima do que pode haver de sutil em momentos-chave da partitura.

No segundo ato, no entanto, o espetáculo cresce bastante musicalmente. Na ária In Questa Reggia, Campos Neto torna quase palpável o terror que acomete Turandot ao narrar a história de sua antepassada violada por um príncipe estrangeiro - contrastando, por exemplo, com a delicadeza com que Ping, Pong e Pang evocam uma China idílica, na interpretação do barítono Homero Velho e dos tenores Giovanni Tristacci e Antônio Wilson. É um trio de luxo, responsável por alguns dos melhores momentos da montagem, vocal e cenicamente, assim como a presença de Mauro Wrona e Savio Sperandio dá dimensões amplas ao Imperador e a Timur. A Liù de Luciana Tavares, por sua vez, ainda que repleta de intenção, esbarra na dificuldade em criar os arcos amplos e líricos da escrita pucciniana.

Cena de "Turandot" no Theatro da Paz Foto: Estadão

Chegamos, então, ao terceiro ato. E ao embate final entre Turandot e Calaf, vividos por Eliane Coelho e Richard Bauer. O termo "embate" não é exagerado, reproduzido também nas vozes, um tenor e uma soprano dramáticos, que precisam lidar com uma escrita capaz de desafiar o mais experiente dos cantores. Bauer e Coelho com certeza o são, mas seus estilos de canto não poderiam ser mais diferentes. Sem abrir mão da força e da urgência, a soprano constroi sua Turandot a partir de sutilezas e de riqueza de coloridos, em que pese a dificuldade em lidar com a ampla tessitura do papel. Bauer, por sua vez, transita o tempo todo na chave heroica, com contrastes entre graves e agudos que são sim marca da escrita verista e testemunhos de uma voz especial, mas da qual o tenor não explora toda a potencialidade dramática (o que já ficara claro na leitura pálida da ária Nessun dorma, que abre o terceiro ato).

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O que teria feito Puccini com este dueto? Em 2001, Luciano Berio tentou responder a esta pergunta, escrevendo uma nova versão para o final da ópera, tratando a versão Alfano, com sua "apoteose hollywoodiana", como uma traição às intenções originais de Puccini. É com base nas mesmas anotações que serviram a Alfano que Berio escreve seu final. Mas ele leva a ópera a um desfecho totalmente diferente. A linguagem musical é essencialmente wagneriana, com o acréscimo da incerteza e ironia da orquestração de Mahler, e se associa a uma outra diferença importante: a supressão do coro final: "Amor! Sol! Vida! Eternidade!" Com isso, o final apoteótico dá lugar à frase "Il suo nome è amor", que em um novo contexto musical não carrega apenas um significado fechado mas, sim, se abre a diferentes possibilidades de interpretação. Turandot, em certo sentido, por não ter um final atestado por seu autor, é uma obra aberta por definição. É daí que extrai sua força. E, com todos os reparos possíveis, a montagem de Belém a reafirma. Em um momento de crise e cortes orçamentários, o Festival do Theatro da Paz faz da ousadia de enfrentar um título complexo a sua contribuição no ano em que completa uma década e meia de existência.

Opinião por João Luiz Sampaio

É jornalista e crítico musical, autor de "Ópera à Brasileira", "Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção" e "Guiomar Novas do Brasil", entre outros livros; foi editor - assistente dos suplementos "Cultura" e "Sabático" e do "Caderno 2"

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