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Música clássica... E um pouco de tudo

Opinião|Elogio à loucura - e à arte

Pela sólida proposta conceitual e pela realização de alta qualidade, o Artes Vertentes é hoje um dos mais importantes eventos do calendário da música brasileira

Foto do author João Luiz Sampaio
Atualização:

TIRADENTES (MG)

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O palco é a Igreja do Rosário, no centro histórico de Tiradentes. Mas a introdução do segundo movimento da Sonata para violoncelo e piano de Debussy, na interpretação de Luiz Gustavo Carvalho e Elise Pittenger, leva a mente ao tema do Festival Artes Vertentes: o elogio à loucura. Há loucura na música de Debussy? A partitura segue e nos coloca no trilho correto de interpretação. A música talvez nos permita acessar dimensões escondidas da alma. O elogio à loucura não seria o elogio à quebra de rótulos, a recusa da necessidade de definir o ser humano em fórmulas que não dão conta de abarcar a complexidade que ele necessariamente carrega? A Sérénade já se transformou no Finale, reapropriando e subvertendo uma vez mais a forma da sonata tradicional. Se o romantismo é a era do sentimento, o moderno (ou, no caso, um de seus muitos embriões) trabalha com a desconstrução de um discurso que busca unidade a partir de novos parâmetros, eventualmente destruindo nossa própria noção do que é música. Unidade, parâmetro, conceito. De volta à loucura. "Aprendi muito com os loucos e isto vem a atrapalhar um pouco o conceito de razão. Fala-se na fonte da sabedoria e na fonte da loucura. Não há fontes separadas, está tudo muito próximo", escreve a psiquiatra Nise da Silveira, que propôs uma revolução no tratamento psiquiátrico no Brasil - e é, não por acaso, uma das homenageadas desta edição do festival.

 

Foto de Marlon de Paula/Divulgação Foto: Estadão

 

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Outro dos homenageados é Robert Schumann, que, no final da vida, sofreu com a esquizofrenia - aspecto que, desde então, tem servido de forma retroativa como filtro através do qual vemos e compreendemos muito de sua obra. Mas há outro aspecto interessante em sua trajetória. Na juventude, foi a literatura o meio que permitiu ao compositor entender o mundo e o lugar que poderia nele ocupar, como artista. Mais do que isso: mesmo quando optou pela música, Schumann o fez carregando consigo uma infinidade de escritores e poetas, não apenas como tema para novas obras musicais, mas como elemento constituinte de sua sensibilidade como criador. Seu trabalho é, assim, um elogio ao diálogo entre as artes. E nesse caminho ele obviamente não esteve sozinho. Mas, com o tempo, a música clássica fez do isolamento uma de suas marcas. Se por questões estéticas ou simplesmente como uma tentativa de reforçar o seu valor por meio de certa aura de exclusividade, não importa. Fato é que entender a música clássica em um contexto mais amplo, em diálogo não apenas com outras artes mas também com temas que movimentam a vida social, só a torna ainda mais rica - e isso não significa abrir mão necessariamente da compreensão de seu valor intrínseco.

É nesse contexto que nasce o Festival Artes Vertentes, com a proposta justamente de fazer dialogar diferentes formas de manifestação - exposições, concertos, filmes, palestras, leituras -, unidas por um tema que, neste ano, é a loucura. "Continuamos todos unidos pelo substrato mais profundo e universal do homem: o inconsciente. É necessário não temer a imersão neste universo, no qual alguns seres humanos vivenciaram gigantescos sofrimentos e foram extramamente sós, rotulados de seres embrutecidos por uma história psiquiátrica altamente questionável", escreve Carvalho, diretor artístico do festival, no programa do evento. Falar de loucura, assim, é discutir também violência, intolerância; a relação com o outro - e como ela, se não evita nossa condição essencialmente solitária, estabelece um diálogo pautado não pelo ódio, de si mesmo ou do diferente, mas pela compreensão.

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Basta um dia de programação para entender como essa proposta se traduz. Horas depois do recital no sábado, dia 9, com a obra de Debussy - e também a complexa simplicidade da Sonata op. 107 de Max Reger (com Carvalho e o clarinetista Iura de Rezende) -, a atração seguinte foi a exibição do filme O Assasino do Czar, de Karen Shakhnazarov, em que a relação repleta de transferências entre médico e paciente em um hospital psiquiátrico russo serve de ponto de partida para uma discussão a respeito da própria história do país - e de seu impacto individual. Mais tarde, o cenário é a Matriz Santo Antônio, com uma seleção de "folias" interpretadas com deslumbre sonoro pela organista uruguaia Cristina Banegas.

Entre uma apresentação e outra, porém, o artista plástico Ricardo Coelho fez uma apresentação de seu livro "O que há de humano em nós", o primeiro lançado pelo festival em seus cinco anos de história. A proposta da obra é, em si, multidisciplinar. A imagem, explica o autor, é o fio condutor do texto, o leva de um lugar ao outro. O tema, por sua vez, é dos mais atuais, ainda que inserido em um panorama histórico. Como pode a arte retratar a dor do ser humano se não está à altura da catástrofe que ele mesmo provoca? E, nesse contexto, como lidar com uma saturação de imagens que, em seu realismo, provoca o paradoxo da perda ou do esvaziamento da identidade? A memória da catástrofe fica circunscrita à memória do corpo que a produziu; e o corpo, em certo sentido, torna-se a antecipação daquilo que pode acontecer com ele. Todas essas questões começam, no livro, com o paradigma colocado por Goya e seu retrato da guerra; e caminham em direção à obra de autores como Anselm Kiefer, Gottfried Helnwein, Christian Boltanski, a arte revelando como se repetem atrocidades e tornando-se, assim, retrato de uma aterradora filiação do ser humano com um passado que se traveste de presente insuperável.

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O domingo, dia 9, começou com um recital de violoncelo e piano. As duas primeiras peças eram obras de juventude, a Sonata de Samuel Barber e a Pequena suíte de Villa-Lobos, seguidas da Suíte italiana de Stravinsky, obra que aponta em direção à fase neoclássica do compositor e é inspirada na música italiana do século 18. Se entendemos a loucura como um conceito que passa pela percepção de nosso lugar no mundo, é justo pensar esse mundo também em relação a mundos que não são os nossos. E aí emerge como protagonista a figura do tempo. É disso que o programa, no final das contas, nos fala, da Sonata escrita por Barber na Europa, com tons brahmsianos que se misturam à uma complexa construção rítmica, à evocação do século 18 que Stravinsky utilizou como maneira de pensar a música no século XX, passando pela ligação de Villa-Lobos com formas do passado, que lhe serviram de ponto de partida para inventar um conceito moderno de arte "brasileira". Tudo isso, não se pode perder de vista, tendo como palco uma relíquia do barroco mineiro.

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Jakob Katsnelson, por Marlon de Paula/Divulgação Foto: Estadão

 

Um pouco mais tarde, novamente na Igreja do Rosário, a palestra de Ricardo Coelho retorna, agora na forma de música. Afinal, seu livro e apresentação falam do retrato da catástrofe, da guerra, da violência gratuita que ceifa vidas - o mesmo tema da Sonata 1.X.1905 de Leos Janácek, interpretada pelo pianista Jakob Katsnelson. A obra nasceu do impacto da notícia da morte de jovem carpinteiro Franti?ek Pavlík, assasinado pela polícia durante protestos em defesa da Universidade de Brno. 1º de outubro de 1905: o nome da peça carrega a data do ocorrido, como se para cristalizar o momento em que a vida é interrompida, assim como a partitura se constrói, em especial na leitura de Katsnelson, a partir de um crescendo que comporta o silêncio, a pausa. Como se, perante a catástrofe, a música precisasse silenciar, mostrando com esses breves instantes o absurdo de uma vida interrompida. O som comenta; o silêncio nos faz relembrar.

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Ao longo de uma semana, o festival apresentou ainda obras de Kurtág, Schumann, Schubert, Prokofiev, Ravel, Scriabin; debates sobre Nise da Silveira e a história do tratamento psiquiátrico no Brasil; leituras de autores como Evandro Affonso Ferreira, autor de O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Roterdã, peças de teatro; uma sessão de filmes de animação que abordam a loucura; leituras dramáticas; palestras; e uma exposição com obras de Arthur Bispo do Rosário. Além da programação em si, o festival tem trabalhado ao longo do ano com crianças da região, fazendo do evento em si apenas o ponto mais visível de uma atividade ampla. Por isso, pela sólida proposta conceitual, muito mais do que mero pretexto ou sugestão, e pela realização de alta qualidade, o Artes Vertentes é hoje um dos mais importantes eventos do calendário da música brasileira.

 

Opinião por João Luiz Sampaio

É jornalista e crítico musical, autor de "Ópera à Brasileira", "Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção" e "Guiomar Novas do Brasil", entre outros livros; foi editor - assistente dos suplementos "Cultura" e "Sabático" e do "Caderno 2"

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