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'Pró ou contra a bomba atômica' de Elsa Morante - A arte como antítese da desintegração

"A realidade está perenemente viva, acesa e atua. Não se pode danificá-la nem destruí-la, e ela não declina. Na realidade, a morte é apenas o outro movimento da vida."

Por Estado da Arte
Atualização:

por Fabrício Tavares de Moraes

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No conto "Intestino Grosso", de Rubem Fonseca, um escritor pornógrafo afirma, entre o sério e o grotesco, que "gostaria de poder dizer que a literatura é inútil, mas não é, num mundo em que pululam cada vez mais técnicos. Para cada Central Nuclear é preciso uma porção de poetas e artistas". Dentro do contexto narrativo, à afirmação não subjaz, porém, uma preocupação ambientalista ou mesmo pacifista. A questão é, talvez e concisamente, o embate entre as "Duas Culturas", conforme tornou-se formalmente conhecido pela obra de C.P. Snow.

Dito de outro modo, a bomba ou o poder nuclear surge no mais das vezes como a epítome da técnica humana, que alcança sua categoria de uma potência à parte ou mesmo superior àquele que a produziu. Os exemplos são inúmeros e recorrentes, além de fazerem-se presentes em ambos os contextos científico e artístico: desde a citação do Bhagavad Gita por parte de Robert Oppenheimer quando do teste Trinity, ou do "medo atômico" presente em O Eclipse, de Antonioni, respectivamente.

Obviamente não escapou à percepção dos críticos a própria ambiguidade desse poder, que oferecia incontáveis vantagens ao homem, ao mesmo tempo em que se mostrava como a primeira possibilidade de sua extinção; e, como mais um exemplo visual dessa consciência, vale a lembrança do subtítulo da obra satírica de Kubrick - Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb -, em geral vista apenas como uma sátira mordaz ao clima da Guerra Fria, e não também a superação do homem por sua própria técnica.

À vista disso, é também curioso o título da coleção de ensaios da escritora italiana Elsa Morante, Pró ou contra a bomba atômica, recentemente publicado pela Editora Âyiné. Numa perspectiva formal, o traço mais característico do livro é a forma como seus "ensaios disparatados" (conforme diz Davi Pessoa Carneiro, tradutor e apresentador da obra) são constituídos e perpassados por uma tônica de inovação estética, de "confusão" entre crítica e ficção, e principalmente do uso da literatura como instrumento de análise da modernidade.

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Ao que parece, Morante faz parte daquela geração de críticos culturais que fazem de cada uma de suas páginas telas, arregimentando erudição, enciclopedismo e sensibilidade, ainda que suas análises, aos olhos mais exigentes, apresentem ocasionalmente uma ou outra imprecisão conceitual, ou interpretações um tanto artificiais. É o caso de um Eugen Rosenstock-Huessy, ou de um dos últimos espécimenes dessa classe, George Steiner.

Se, como dizia Ortega y Gasset, a especialização é uma das características do barbarismo, a resposta para a crise também não se encontra no monturo de dados e na acumulação babélica de nosso "regime dos sinais" (Tom McCarthy). Antes, talvez a única opção viável seja o frescor quase genesíaco da consciência crítica, análogo ao adágio aplicado por Carpeaux à educação europeia de então: "cultura é o que resta depois que já nos esquecemos de tudo".

Afinal, se já o mito e posteriormente a filosofia entendiam a relação embrionária entre a verdade e a memória (a aletheia etimologicamente refere-se à recusa em beber das águas do Letes, após a morte), não menos verdadeiro é o diagnóstico de Nietzsche de que as leituras excessivas certamente prejudicam a criação.

Além do ensaio que dá título ao livro, dois outros merecem destaque, a saber, "Vermelho e Branco" e "Sobre o romance". No primeiro, a autora, segundo anteriormente dito, faz da literatura um instrumental de análise dos tipos literários e mesmo das "atitudes do homem diante da realidade".

Para a autora, todos os personagens derivam ou são misturas de três personalidades arquetípicas: O calcanhar de Aquiles, ou o Grego da Idade Feliz, para o qual "a realidade se mostrava viva, fresca, nova e absolutamente natural"; Dom Quixote, para quem "a realidade não o satisfaz e lhe inspira repugnância, e ele procura salvação na ficção"; e, por fim, Hamlet, no qual "a realidade também lhe inspira repugnância, mas ele não encontra salvação e, no final, decide não ser". Desse modo, "Orestes é uma combinação de Aquiles, D. Quixote e Hamlet. O mesmo pode-se dizer de Werther. Raskólnikov é uma contaminação entre Hamlet e D. Quixote. Adolphe é um D. Quixote enxertado em Hamlet. Oblómov é um D. Quixote enxertado em Hamlet que queria ser o Grego da Idade Feliz".

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Em "Sobre o romance", na antiga porém ainda candente discussão sobre o fim do romance, Elsa trata da obra de arte como sistema, "um dos conceitos essenciais de seus ensaios. Engana-se, porém, quem julga que essa noção implica, de algum modo, uma redução ou mutilação da realidade. Na verdade, a autora, segundo seu próprio relato, tornou-se célebre, e por vezes repudiada, em razão de sua ênfase - à maneira de T.E. Hulme - na realidade das coisas e na concretude do mundo. Assim, nas suas palavras:

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A arte narrativa (igualmente àquela do teatro ou da poesia lírica) é uma das formas necessárias de que se vale o homem para suscitar, com o uso da palavra, uma verdade poética, sempre nova em relação aos objetos reais (segundo a finalidade de todas as artes, que é a renovação perene da realidade). E essa arte encontra, no romance, sua inteira configuração. O romancista, semelhante a um filósofo-psicólogo, apresenta em sua obra um sistema único e completo do mundo e das relações humanas. Mas, em vez de expor seu sistema em termos de raciocínio, é levado, por sua natureza, a configurá-lo numa ficção poética por meio de símbolos narrativos.

É nessa linha, portanto, que o ensaio homônimo se instala, isto é, a arte é uma espécie de luta ou resistência àquilo que Elsa Morante chama de "sistema de desintegração", que é a estruturação do nosso instinto do Nirvana, a crença do "aniquilamento final como o único ponto de beatitude possível".

Dito de outro modo, "[as bombas], nosso tesouro atômico mundial, não são a causa potencial da desintegração, mas a manifestação necessária desse desastre já ativo em nossa consciência". É cabível a objeção de que não há nada de novo nessa declaração, ao menos desde a publicação do hoje quase esquecido The Urge to Mass Destruction (1957), de Samuel J. Warner, publicado no contexto da Guerra Fria.

Entretanto, o ponto crucial da crítica da autora é justamente a noção da arte como ordenamento, movimento de integração iluminado pelo real. O que as linguagens científica, tecnocrata e política fazem - muitas das vezes conjuntamente - é um trabalho de demolição do tecido cultural, ou mesmo de "despoetização" do real, nos termos de Octavio Paz. Ou, se preferirmos uma perspectiva positivista e conforme ao pensamento de Massimo Cacciari (também publicado pela editora Âyiné), o Império, isto é, todas as forças que congregam e organizam pela força, imprensam sua marca e insígnias sobre o real, criando estratos de simulacros sobre o "mundo-da-vida". A princípio agregador, o Império só subsistirá em razão dos colapsos das formas culturais ou ordens civis sobre as quais se impõe.

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Portanto, nas palavras da escritora:

A arte é o contrário da desintegração (grifos da autora), simplesmente porque a razão da arte, sua justificação, seu único motivo de presença e sobrevivência, ou, caso se prefira, sua função, é exatamente a seguinte: impedir a desintegração da consciência humana, em seu cotidiano desgastante e uso alienante com o mundo; restituir-lhe, continuamente, na confusão irreal, fragmentária e usada nas relações externas, a integridade do real, ou, em uma única palavra, a realidade.

Tendo isso em mente, talvez seja cabível a afirmação de que, na modernidade, movimentos como o dadaísmo ou os happenings foram, de certa maneira, mais subservientes ao ambiente cultural então vigente do que alguns autores e artistas modernos que ainda se atinham a procedimentos canônicos. A percepção de Morante é ainda mais impactante, haja vista que a arte e o chamado pensamento crítico atuais manifestam uma revolta não apenas contra as estruturas tidas como injustas que imaginavam embutidas no real, mas contra o próprio conceito - mesmo que poético - de realidade.

Se, nos dizeres de Roger Kimball, testemunhamos, de fato, "experimentos contra a realidade", talvez sirva-nos de alento essa base pétrea da crítica-ficção de Elsa Morante, assim como suas vigorosas declarações de que "a realidade está perenemente viva, acesa e atua. Não se pode danificá-la nem destruí-la, e ela não declina. Na realidade, a morte é apenas o outro movimento da vida. Íntegra, a realidade é a própria integridade: em seu movimento multiforme, instável e inexaurível - que jamais deixará de ser explorado - a realidade é única, sempre".

Fabrício Tavares de Moraes é tradutor e doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University London).

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