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Poesia em casa -- Sejamos radicais

Para os amantes da poesia, tirando documentos condenatórios ou mensagens urgentes, quase toda prosa é acessória.

Por Estado da Arte
Atualização:

Por Pedro Gonzaga

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Para os amantes da poesia, por certo esta crônica será acessória. Arriscaria dizer que para os amantes da poesia, tirando documentos condenatórios ou mensagens urgentes, quase toda prosa é acessória. Mas busco a adesão dos leitores menos radicais, dos que apenas vez ou outra se perdem nuns versos, dos que não têm o hábito diário de frequentar as perplexidades perdurantes da melhor lírica. Em outras palavras, gostaria de radicalizá-los, mesmo a preço de os perder para as próximas colunas.

Há anos, por questão de gosto, tempo e energia, troquei a companhia noturna dos romances e ensaios pela dos poemas. Depois de dias cada vez mais agitados e inimigos da concentração, descobri que a leitura de um par de poemas antes de dormir oferecia matéria suficiente para a mente até que se a vencesse o sono. Podem os olhos estar entorpecidos, o raciocínio falho, o corpo derribado, mas aquelas poucas linhas, com sua forma econômica na página, são sempre absorvidas, funcionando efetivamente como escape ao cotidiano das coisas. A questão é que as tramas de um romance, os movimentos de um ensaio, demoram demais para entrar em ebulição e entregam menos num curto prazo, às vezes os poucos minutos que nos restaram da jornada. Reparem como meia dúzia de versos de Hitomaro, gigante da poesia clássica japonesa, dão-nos matéria para as mais fundas sensações:

 

Hitomaro

 

Sento-me em casa

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Em nosso quarto

Na nossa cama

Olhando longamente

para teu travesseiro

 

Mesmo um poema prosaico, celeremente nos envolve em sua imagética, em sua atmosfera, como no poeta contemporâneo Charles Simic:

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Casal em Coney Island -- Charles Simic

Era cedo numa manhã de domingo,

Então vestimos nossos melhores trapos

E saímos a passear pelo calçadão de madeira

Até chegarmos a um lugar

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Com pequenas torres e bandeiras tremulantes.

Me fez pensar num bolo de casamento

Na vitrine de uma luxuosa confeitaria.

Senti calor, e então tirei a jaqueta

Passei meu braço por tua cintura

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E te trouxe para mais perto de mim

Enquanto deitavas a cabeça em meu ombro.

Qualquer um veria que tínhamos feito amor

Na noite passada e ainda cambaleávamos sobre nossos pés

Olhando as bandeirolas brancas e vermelhas

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Agitadas pelo vento marinho.

As atrações e os estandes de tiro

Com seus patos alinhados a marchar

Ainda estavam fechados e cadeados.

Ninguém por perto para nos levar nossa primeira moeda.

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Por isso, a crônica de hoje era mais bem uma sugestão, um convite: experimentem essas leituras noturnas. Depois de uma semana, sintam-se à vontade para me comunicar os resultados. E não se preocupem, seus silêncios soarão como uma vitória, novos e futuros radicais.

 

Pedro Gonzaga é poeta, tradutor, músico e professor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de A Última Temporada, Falso Começo e O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), sua estreia na crônica. Acaba de lançar mais um livro de poesia, Em outros tantos quartos da Terra.

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