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Poesia em Casa - Pedro Gonzaga traduz Jaime Gil de Biedma

Por Estado da Arte
Atualização:

por Pedro Gonzaga

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3 poemas de Jaime Gil de Biedma

Importante poeta da geração dos 1950 da poesia espanhola, Jaime Gil de Biedma (1929-1990) é dono de um estilo direto e de expressão coloquial que, a bem da verdade, contribui para sua lírica de um confessionalismo contido e sopesado, produzindo, a um só tempo, uma proximidade de tom, e um afastamento reflexivo. Os três poemas foram escolhidos dos poemas reunidos em Las personas del verbo.

Numa despedida

Tardam as cartas e não bastam

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para dizer o que se quer.

Depois passam os anos, e a vida

(demasiado confusa para explicar em cartas)

nos fará mais perdidos.

Uns nos outros, iguais às sombras

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ao fundo de um corredor desvanecendo-nos

viveremos da luz involuntária

mas só por um instante, porque já a lembrança

será como uma mancheia de conchas recolhidas

tão bonita em si mesma que não devolve nunca

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as palmeiras felizes e o mar tremulante.

Tudo ocorreu há minutos: dois amigos

vimos teu rosto terrivelmente sério

querendo sorrir.

Desapareceste.

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E estamos os dois sós e em silêncio,

em meio a este dia de domingo,

belíssimo de maio, com matrimônios jovens

e crianças animadas que gritavam

ao decolar de teu avião.

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Agora as montanhas parecem mais próximas.

E, pela primeira vez,

pensamos em nós.

Sozinhos com tua imagem,

cada qual se conhece por este sentimento

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de cansaço, que é doce - como um brilho de lágrimas

que recobre a memória destes dias,

esta estranha semana.

E o mal que nos fazemos,

como o que a ti fizemos, o inevitavelmente

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amargo desta vida em que sempre, sempre,

somos piores que nós mesmos,

talvez ressuscite um velho sonho

conhecido e olvidado.

O sonho de sermos bons e felizes.

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Porque sonho e lembrança têm força

para obrigar a vida,

ainda que não sejam mais que um limite impossível.

Se este mar de projetos

e tentativas naufragadas,

este torpe tapete a cada instante

cosido e descosido,

esta guerra perdida,

nossa vida,

dá de si alguma vez um sentimento digno,

um ato verdadeiro,

nele tu estarás para sempre associado

a meu amigo e a mim. Não te teremos perdido.

 

ANTES DE SER MADURO

(A José Antonio)

 

Ainda a velha tentação

dos corpos felizes e da juventude

tem atração sobre mim,

não me deixa dormir

e esta noite me excita.

Porque alguém contou histórias

de pescadores na praia,

quando voltam: a raia do amanhecer

marcando, lívida, o limite do mar,

e assam sardinhas frescas

em espetos, sobre a areia.

Isto o imagino em seguido.

E me toma um desejo de viver

e ver amanhecer, deitando-me tarde,

que não está em proporção com a idade que já tenho.

Ainda que talvez alivie acordar

em outro ritmo, amanhã.

Liberado

das exaltações desta noite,

de seus fantasmas em blue jeans.

Como livros lidos passaram os anos

que vão ficando para trás, já sem razão de ser

--obras de outro momento.

E a ânsia de chorar

e o roçar do lençol, que me mantinha inquieto

nas odiosas noites de verão,

o luxo da impaciência e o dom da elegia

e o dom da disciplina aplicada ao sonho,

minha fé na grande história...

Soldado da guerra perdida da vida,

mataram meu cavalo, quase não lembro disso.

Até que me estremece

uma pontada de sensualidade.

Envelhecer tem suas graças.

É igual a na juventude

aprender a dançar, agarrar-se a um ritmo

mais insistente que nossa experiência.

E procura também certo instintivo

prazer curioso,

uma segunda natureza.

 

Ultramort

Uma casa deserta que eu amo,

a duas horas daqui

me serve de consolo.

Em suas telhas roídas pelo musgo

a lua se extenua,

dorme o sol do tempo.

Entre seus muros o silêncio existe

que agora imagino

-- sonhando com viver

uma segunda infância prolongada

até o esgotamento

de ser carnal, feliz.

Assomarei calado para ver o dia,

contente de estar sozinho

com a vida bastante.

Encontrar na cama outro corpo,

não mais que algumas noites,

será como banhar-me.

Pedro Gonzaga é poeta, tradutor, músico e professor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de A Última Temporada, Falso Começo e O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), sua estreia na crônica. Acaba de lançar mais um livro de poesia, Em outros tantos quartos da Terra.

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