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Pequeno Manifesto pelo Legalismo

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Por Eduardo Wolf
Atualização:

por Andrea Faggion

Se fizessem uma pesquisa global (na verdade, confesso que não sei se já fizeram ou não) sobre o nível de valorização de um sistema legal por parte das pessoas submetidas a ele, eu apostaria, sem medo de perder, que o Brasil ocuparia as últimas posições. Somos um país de ex-revolucionários que adotaram práticas democráticas por razões pragmáticas relativas a seu projeto de poder, liberais que acreditam que cada lei só precisa ser obedecida se coincidir com a autoridade moral de sua própria consciência, conservadores que acreditam que apenas costumes poderiam ter força de lei, etc. Tem até monarquista que acredita que a república tenha sido um golpe e a monarquia deva ser restaurada para termos um sistema legal legítimo! Enfim, encontra-se de tudo dentre os que se engajam mais ativamente no debate político brasileiro atual. A única figura rara, para não dizer ausente, é a daquele que simplesmente advoga a fidelidade à lei vigente como tal, enquanto padrão moral a ser seguido, demandando justificativas muito fortes para o desvio enquanto exceção. Essa figura, se se manifesta, é rapidamente tachada de "legalista", etiqueta que, uma vez colada, parece suficiente como refutação.

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Na verdade, talvez se deva fazer ao menos uma correção ao parágrafo acima. O que é incomum na política nacional não é a defesa da fidelidade à lei como tal, mas que se leve a sério esse tipo de discurso, isto é, que ele não seja desacreditado como simples hipocrisia. O recente embate a respeito do impeachment da presidente Dilma Rousseff e, de modo geral, os problemas com a justiça envolvendo uma série de políticos petistas evidenciaram o ponto. Quando se pergunta, por exemplo, "e o Aécio?", não se parece ter em vista uma legítima reivindicação de isonomia, mas a denúncia de uma alegada hipocrisia. Explico. O sentimento de indignação dos que tomam partido pelo governo cassado parece brotar muito mais de uma sensação de que a legalidade teria sido usada como mero instrumento de perseguição ao partido da justiça social do que de uma defesa intransigente da ordem legal, contra aplicações seletivas das leis. Haveria, assim, um modus operandi político ilegal, porém, naturalizado, comum e aceito por todos, sendo que certas forças políticas teriam se aproveitado do fato de o governo petista ter adotado esse mesmo modus operandi, por sinal, tido até por único possível no Brasil, para tirar o partido do poder.

De fato, independentemente da existência ou não de justificativa legal para as ações que tiveram e têm por alvo políticos petistas ou pessoas ligadas ao governo petista, é bem possível que a queda do governo tenha sido causada muito mais por seus resultados econômicos do que por suas (supostas ou reais) infrações à lei vigente. Em suma, não é que tenham querido tirar o PT do governo porque "não queriam pobre andando de avião". O que ninguém queria era inflação com recessão. A lei? Bom, da lei, se lembra quando convém.

No fundo, então, o importante não é decidirmos quem tem razão em sua acusação de indignação seletiva e falta de sinceridade dirigida à outra parte. O grande problema é não termos sequer a perspectiva de um governo que possa fazer a verdadeira reforma social de que o Brasil tanto precisa: a mudança do modo de governar, em vez da simples eleição de bons fins (como o combate à pobreza) com o uso dos mesmos meios de sempre. Ouso dizer que, sendo tão grave o problema do achincalhamento generalizado das instituições políticas e do sistema legal, é pior para o país que um governo consiga se passar por defensor da justiça social, e tanto pior que suas ações sejam acolhidas como meios para a realização das causas de um partido, em vez dos objetivos de um indivíduo.

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Em seu ensaio político "Da independência do Parlamento", o filósofo escocês David Hume (1711 - 1776) demonstra sua perspicácia de homem prático ao observar que os homens são, em geral, mais honestos em sua capacidade privada do que em sua capacidade pública, de modo que "vão mais longe para servir um partido, do que quando apenas seu próprio interesse privado é concernido". Na mesma passagem, Hume explica essa afirmação, reconhecendo que o sentido de honra é um contrapeso para o egoísmo humano:

"Mas, onde um corpo considerável de homens age em conjunto, esse contrapeso é, em grande medida, removido; pois um homem está certo de ser aprovado por seu próprio partido, para o qual ele promove o interesse comum; e ele logo aprende a desprezar o clamor dos adversários"[1]

Nesse sentido, é até mesmo crível que o PT tenha conseguido conferir novas dimensões ao que sempre foi o modus operandi comum da política nacional. Ele estava justificado a fazê-lo, porque seus fins eram dignos e a causa não era individual, mas coletiva. Assim, o infrator preso converte-se até mesmo em um mártir: herói do povo brasileiro. Afinal, o que todos faziam para si, sem serem pegos, ele fez por uma causa; e ainda foi pego, pagando com seu bem-estar privado por ter lutado por uma causa coletiva. O problema é que, mesmo que se vise uma boa causa, quando se age à revelia da lei e das instituições, é difícil imaginar que o resultado possa ser outro que não uma crise política e econômica de dimensões tão profundas. Tantas vezes, atinge-se, portanto, o oposto do que supostamente se visava.

De toda maneira, agora que retornamos à normalidade de sermos governados pelos que violam a lei para fins privados, é hora de refletirmos sobre a origem do problema, para que, ao menos, futuras gerações possam sonhar com uma saída. Particularmente, tenho para mim que uma grande nação não é feita de riquezas naturais, mas da convicção generalizada de que a sociedade 1) é do interesse de todos, e; 2) só pode subsistir se todos aderirem a certas regras, independentemente de suas concepções morais privadas. Em consonância com uma série de pensadores do direito e da política, eu diria que a ordem legal é o esteio de toda sociedade que seja mais do que uma pequena tribo homogênea.

O aviltamento da ordem legal no Brasil passa por séculos de uso do Estado para proveito de poucos em detrimento de muitos, o que, diga-se de passagem, não mudou com a escolha de empresários campeões pelo governo do PT. Mas esse aviltamento começa pela total e completa banalização do próprio sistema legal, com a proliferação absolutamente desmedida de regulamentações sem sentido, nas quais não se reflete sobre princípios, não se medem consequências e não se calculam custos. Temos, em nossa sociedade, a lei pervertida em verdadeiro estorvo, o que determina a cultura do desrespeito à lei para possibilitar realizações práticas, que, por sua vez, leva apenas ao presente caos econômico e social. Chego, com isso, à conclusão de que não precisamos apenas de novos políticos e partidos. Precisamos, acima de tudo, de uma nova cultura política. Por que não dizer de uma cultura menos (mas muito menos!) legiferante e mais legalista?

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[1] HUME, David. Political Essays. Cambridge Texts in the History of Political Thought. Cambridge University Press, 1994, p. 24.

Andrea Faggion é doutora em Filosofia pela Unicamp e professora de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Texto preparado para o portal da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia. (ANPOF).

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