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MasterChef nos lembra que gosto é objetivo

Por Marcelo Consentino
Atualização:

por Rodrigo Cássio

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No segundo programa da atual temporada de MasterChef, um dos cozinheiros que disputam o prêmio fez um comentário que eu nunca tinha ouvido ali, embora fosse fácil imaginar que surgiria em algum momento. No instante em que a chef Paola Carosella começava a avaliar o seu prato, o cozinheiro disse:

- Mas o gosto é algo pessoal, não é?

Ao que Carosella respondeu, referindo-se aos colegas de júri:

- Sim, o gosto é pessoal. Por isso nós somos três.

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Esse curto diálogo expôs o que sempre me interessou especialmente neste programa de TV. Para que a sorte dos cozinheiros candidatos a chefs seja decidida, os jurados precisam construir um consenso de gosto sobre os pratos que lhes são apresentados. Comparado a outros reality shows similares, como a competição musical The Voice, MasterChef enfatiza muito mais essa construção, manipulando a expectativa dos espectadores sobre o resultado das degustações.

Poderia o MasterChef nos ensinar algo sobre o conceito filosófico de gosto? A bem da verdade, não é comum que a experiência do paladar seja abordada pela filosofia no mesmo nível de outras experiências estéticas. Nos principais capítulos da história do pensamento ocidental, o prazer da degustação de uma boa comida raramente se equipara à experiência contemplativa de coisas belas.

Platão, por exemplo, posicionava o bom e o belo acima das satisfações que podemos obter com o nosso corpo. Já Aristóteles, apesar das críticas ao mestre, considerava que o sentido humano mais valioso é a visão, cabendo ao paladar um papel bem menos importante. Nem mesmo os modernos se dispuseram a acolher a gastronomia como uma arte capaz de oferecer experiências de grande relevância. Para Kant, o prazer com a comida é da ordem do "agradável", mobilizando um tipo de juízo distinto daquele que chamaríamos exatamente de "juízo estético".

Apesar de tantas ressalvas, penso que o MasterChef nos permite discutir, de um ponto de vista filosófico, as operações envolvidas na produção de consenso sobre o gosto. Se assim o fazemos, a resposta de Paola Carosella pode se revelar bem menos contundente do que a princípio. Ao cozinheiro que quis relativizar a sua decisão sobre a qualidade do prato, ela poderia simplesmente dizer que não, o gosto não é "pessoal". Na verdade, o gosto é algo solidamente objetivo.

O gosto como atmosfera

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Até mesmo para o padrão MasterChef, em que a autoridade dos jurados e a franqueza dos julgamentos andam juntas, uma afirmação como essa seria recebida como petulância. Como poderia o gosto não ser "pessoal" em uma época em que a verdade é sempre "relativa"? No entanto, a tese de que o gosto tem objetividade pode ser fundamentada em boa filosofia, e também na experiência de emitir e comparar os nossos próprios juízos no decorrer do tempo. Assim se posicionava, por exemplo, Clement Greenberg, um dos mais importantes críticos de arte do século XX.

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Em Estética Doméstica, um dos livros de Greenberg publicados no Brasil, o gosto é definido como uma espécie de atmosfera, criada através da avaliação dos objetos da arte por aqueles que se dispõem a avaliá-los. Visto na história, ele é o resultado de consensos que os avaliadores produzem, comparando as conclusões a que chegaram. Isso explica que o gosto seja passível de revisões, e elimina a objeção ingênua que considera a variedade dos juízos uma prova de que, nesse campo, nada haveria de objetivo. Que os avaliadores possam ser honestos quando julgam a qualidade de uma obra é muito mais importante do que eles estarem sempre de acordo em seus juízos.

Embora Greenberg escrevesse sobre arte, e não sobre deliciosos tartares feitos com técnicas ousadas e finas especiarias, a operação por trás do seu conceito de gosto é a mesma que vemos em MasterChef. A experiência com o objeto, e apenas ela, é o que nos faz reconhecer sua qualidade.

Por esse motivo, a qualidade não é algo que se possa demonstrar com argumentos. Ela nos chega diretamente pelos sentidos. Não há argumentos que possam convencer alguém de que Mozart é melhor compositor que Zezé di Camargo; mas quem se dispuser a ouvir música, com a dedicação necessária para compreendê-la, dificilmente chegará a uma conclusão diferente. Do mesmo modo, para os três jurados de MasterChef cumprirem seus papéis, é preciso que experimentem todos os pratos que lhe são servidos.

Há ocasiões em que eles ficam em silêncio depois de degustarem. Por certo, não é apenas para aumentar a tensão dos espectadores e cozinheiros. Manifestar a qualidade em palavras é realmente difícil, e é o que torna tão necessários os bons críticos. Quando nos lembra disso, a gastronomia inesperadamente expõe, em uma atração de TV, os princípios de uma crítica judicativa, atenta aos seus objetos, e que ainda poderia ajudar a explicar a arte do presente. Se não a temos hoje com muita frequência, é porque ela se tornou marginal na academia, e também desapareceu nos circuitos da arte mais desenvolvida.

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O domínio está agora com aqueles que consideram o gosto realmente "pessoal", ou, descartando de vez o conceito, sequer precisam endossar o que o senso comum diz sobre ele. Quem visita exposições de arte contemporânea é menos instigado a julgar a qualidade da sua experiência do que a "refletir" sobre "as questões do seu tempo", como enuncia o texto da 32a Bienal de São Paulo, citando o "aquecimento global", "a extinção das espécies" e a "perda da diversidade biológica e cultural".

Distanciamento do espectador

Se em The Voice os espectadores podem ouvir, junto dos jurados, os trabalhos que os músicos executam no palco, o máximo que podemos fazer ao assistir MasterChef é imaginar o sabor dos pratos que o júri degusta.

Ao tirar do espectador a possibilidade de ter a experiência, MasterChef a coloca no centro da disputa, exigindo uma atenção diferente para o ato de apreciar e julgar o que os concorrentes do programa produziram. Como em todo reality show, os espectadores opinam sobre os participantes de que mais gostam; mas a avaliação moral não influencia no resultado do jogo. O que importa, de fato, é o resultado da experiência que os pratos provocam.

Alguns poderiam dizer que esse distanciamento do espectador é um problema, porque nos torna reféns de um corpo de jurados do qual, talvez, discordássemos. Outro crítico de arte pouco citado hoje, Clive Bell, certamente diria que essa distância evita a ilusão de que julgar bem é algo fácil e simples. Eu, que cozinho muito pouco, estou de acordo com Bell e Greenberg. MasterChef é uma oportuna lembrança de que o gosto é objetivo, e que essa objetividade precisa de um elevado grau de exigência, rigor e cultivo.

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Em outras palavras, é uma lembrança de que a qualidade é uma coisa bastante rara - e também muito difícil.

Rodrigo Cássio Oliveira é professor adjunto da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Comunicação Social (UFG), é autor do livro Filmes do Brasil Secreto (2014)