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Liberdade e Tirania: quatro livros em defesa da democracia

Hoje a tirania ronda até as democracias mais estáveis. Timothy Garton Ash, Timothy Snyder, David Frum, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt explicam como elas colapsam e como sobrevivem em condições adversas.

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Por Estado da Arte
Atualização:

por Felipe Pait

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Governos constitucionais foram derrubados à força no Brasil em 1889, 1930 e 1964. Cada um dos 3 regimes de exceção aprofundou o arbítrio com golpes dentro dos golpes, mas acabou deixando o poder sem oferecer resistência violenta. Hoje a tirania ronda até as democracias mais estáveis e os estudiosos buscam na história do Brasil e dos países vizinhos lições relevantes para entender tanto o fenômeno do colapso das democracias como a sobrevivência delas em situações desafiadoras. Escolhemos quatro livros recentes para contemplar as filípicas contra o autoritarismo em democracias mais maduras do que a nossa.

Timothy Garton Ash, professor de Oxford, escreveu Liberdade de Expressão: Dez princípios para um mundo interligado, já traduzido em Portugal. O erudito livro, baseado em extensas discussões internacionais e virtuais, mostra que a mais essencial das liberdades republicanas é plural e universal, e nunca vai deixar de gerar polêmicas apaixonadas. Uma importante lição: o pensamento autoritário nega a aspiração de liberdade, comum a toda humanidade, como se fosse uma ideologia particular ou estrangeira; ou então despreza experiências reais de liberdade que se desviam do ideal inatingível por deixarem de seguir algum requisito formal. Quando o livro saiu, no remoto ano de 2016, as ameaças de retrocesso da democracia ainda pareciam restritas às bordas da Europa. A partir da publicação, os avisos de Garton Ash se tornaram cada vez mais relevantes.

O curto e forte Sobre a Tirania: Vinte Lições do Século XX Para o Presente, de Timothy Snyder, é um manual para enfrentar movimentos tirânicos em países que supunham que suas liberdades eram totalmente sólidas. Snyder, professor de Yale que estudou com Garton Ash, aplicou às democracias de hoje seus estudos sobre a história da Europa Central e Oriental. Ele nos alerta que as democracias não se preservam por si só, sem ativa defesa dos indivíduos, e que para os colapsos das repúblicas concorrem o entusiasmo de uns, a indiferença de outros, e o temor de muitos. A democracia exige decência, coragem, ética, e bom senso de cada cidadão.

O jornalista e escritor David Frum advertiu, em um tweetstorm de novembro de 2016, que o governo Trump não iniciaria a construção de um regime autoritário deliberadamente, como fizeram seus congêneres na Venezuela, Hungria, Turquia, ou Polônia. Para o autor, a primeira prioridade do novo governo seria o enriquecimento pessoal: o benefício de controlar um estado moderno é menos o poder de perseguir os inocentes do que o de proteger os salafrários - como bem sabemos no Brasil! Ele previu que a venalidade e incompetência nas altas esferas iriam suscitar investigações da imprensa e dos poderes independentes da República, que assim se tornariam alvos de retaliação por parte do executivo, com a complacência de um partido que rejeitou as normas cívicas tradicionais. "A construção do aparato de vingança e repressão começará de forma oportunista e bagunçada. Ela acelerará metodicamente", concluiu.

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Frum entra para o debate com impecáveis credenciais conservadoras: trabalhou na Casa Branca escrevendo discursos durante o governo de George W. Bush no inicio dos anos 2000. Grupos ideológicos ligados ao conservadorismo americano - os moralistas, a direita econômica próxima aos grandes negócios, os libertários, os inflexíveis partidários da lei e da ordem contra o crime, os adeptos de um nacionalismo diplomático-militar ativo - se renderam com entusiasmo à subversão dos valores tradicionais, com a notável exceção dos assim chamados neoconservadores como Frum. Ele expande suas considerações em artigos na revista The Atlantic, e agora no livro Trumpocracy: The Corruption of the American Republic, decerto a melhor descrição do governo abertamente tiranófilo que se instalou nos Estados Unidos em 2017, e do gradual abandono dos valores cívicos pelo Partido Republicano nas últimas décadas.

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de ciência política em Harvard, escreveram How Democracies Die, talvez o livro mais valioso para a compreensão do fenômeno do ressurgimento do autoritarismo. Eles fornecem quatro indicadores práticos do comportamento autoritário: a rejeição das regras do jogo democrático; a negação da legitimidade dos antagonistas; a incitação à violência; e a propensão a negar direitos republicanos aos opositores e à imprensa. Os autores fazem vários paralelos entre a situação americana atual e episódios onde democracias da América Latina e da Europa desabaram, dos quais tiram tanto advertências como lições encorajadoras. O livro nos serve também na direção oposta: apresenta um resumo da história americana que é essencial para entender a política atual, e alerta os brasileiros sobre os perigos para a nossa democracia.

Levitsky e Ziblatt mostram que o pensamento anti-democrático não é estranho aos EUA, mas esteve afastado do poder por hábitos que foram acumulados durante a história da República e eram respeitados até recentemente pelos adversários políticos. A saúde da democracia vira motivo de preocupação quando os partidos deixam de fazer o papel de preservar as instituições e impedir que elementos autoritários tenham acesso às instâncias mais altas. Os mecanismos de defesa da democracia são as leis, as instituições e a divisão entre poderes. Mas as defesas não funcionam automaticamente: o que garante a permanência das instituições são as ações dos indivíduos, seguindo normas, em geral não-escritas, de tolerância em relação a ideias divergentes, aceitação da legitimidade dos adversários e comedimento na busca pelo poder. Emprestando uma metáfora de um artigo anterior neste Estado da Arte ("O Mestre de Go"), a democracia persiste enquanto os adversários tratam a competição como um jogo de Go, onde os objetivos são ocupar um pouquinho mais de território e se preparar para a próxima partida; mas começa a morrer quando cada um busca destruir totalmente o oponente dando xeque-mate.

Já em dezembro de 2016, Levitsky e Ziblatt haviam publicado um artigo de opinião no New York Times que identificava o autoritarismo e o enfraquecimento da civilidade política como riscos concretos para a democracia americana. Uma lacuna foi apontada imediatamente pelo economista Paul Krugman, que vem expondo a crescente desonradez do Partido Republicano e de seus aliados muito antes da maioria dos observadores: o abandono das normas foi feito unilateralmente por um partido. O livro de 2018 dos professores de Harvard documenta amplamente essa assimetria, e coloca a questão para a oposição: continuar se comportando de acordo com os costumes republicanos, correndo o risco da tomada irreversível do poder pelas forças autoritárias, ou abandonar as normas para tentar salvar a democracia, em uma vitória que pode acabar sendo de Pirro?

E no Brasil? As corporações dos donos do poder possuem hábitos próprios de comportamento, que embora não correspondam exatamente aos mais altos ideais democráticos, servem de freio às aspirações de poder total, e podem ter contribuído para as transições pacíficas para regimes constitucionais em 1894, 1945, e 1985. E as tradições de tolerância e inclusão em relação aos oponentes sempre fizeram parte da política brasileira, consideração que ajuda a compreender episódios recentes. Mas o autoritarismo está distribuído em diversos partidos, diversos indivíduos, diversos momentos. O discurso anti-democrático é mais comum em grupos extremistas, separados entre si por divergências em relação às polêmicas da hora mesmo quando desprezam juntos a continuidade democrática, conforme mencionamos em artigo anterior sobre a esfera de Riemann.

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Desunidos, os candidatos a tiranos oferecem riscos apenas potenciais. Quando formam uma ala, como nos EUA nos dias de hoje, são uma grande ameaça. Para preservar a liberdade quando não podemos concordar, devemos concordar em discordar. Temos tanto a aprender com os países mais ricos como eles conosco.

Felipe Pait é professor no Laboratório de Automação & Controle da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Estudou engenharia elétrica na USP e na Universidade Yale.

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