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As liberdades modernas devem algo ao cristianismo?

Rodrigo de Lemos analisa como a moral sexual cristã se tornou, no ambiente plural das democracias liberais modernas, apenas uma entre tantas moralidades possíveis - e por que isso incomoda os cristãos conservadores.

Por Estado da Arte
Atualização:

Por Rodrigo de Lemos

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Na geleia geral da nascente nova direita brasileira, as polêmicas sobre liberdade de expressão dos últimos meses revelaram duas identidades políticas em progressiva diferenciação, uma de sensibilidade liberal, outra pendente ao conservadorismo cristão. A importância dessa caracterização não é modesta, dado que a oposição ao petismo crepuscular tendia a aglutinar ambas essas famílias. De súbito, o hífen que ligava "liberal" a "conservador", formando um rótulo algo anfíbio, pareceu passível de discussão. Foi comum que, como modo de reconciliar polos (liberdade e religião) aparentemente em conflito, surgisse a pergunta: mas o próprio liberalismo não adveio do cristianismo? Tomar distâncias quanto a esse último não corresponde a serrar o galho em que os liberais estão sentados?

Visões clássicas sobre o liberalismo não deixam de identificar um vínculo entre o cristianismo e as liberdades modernas. Tocqueville já punha em relevo, nos Estados Unidos, o papel da religião naquela que ele tinha pela primeira sociedade democrática. A profusão de seitas no país temperaria a gana de bem-estar material que movia os cidadãos americanos; a ação moderadora da religião refrearia, assim, uma tendência pronunciada à atomização social. Marcel Gauchet vai tão longe quanto distinguir entre o cristianismo e a democracia algo como uma relação genética. Para Gauchet, o cristianismo teria sido a religião da saída da religião, aquela que rompe com a submissão do homem pelo homem nas sociedades antigas, calcada no modelo da submissão sobrenatural do homem aos deuses; teria assim o Cristo aberto as portas ao advento do indivíduo autônomo. Autores cristãos estão longe de não reconhecerem continuidades desse tipo entre o cristianismo e aspectos da modernidade, e um Rémi Brague, na sua crítica ao secularismo, destaca o quanto o próprio vocabulário laico deriva de noções católicas.

Bem entendido, não é porque uma ideia possa haver participado da gênese de outra que ambas se tornam imediatamente equivalentes, nem ficam abolidas por isso todas as suas possíveis contradições. Ao contrário, a metáfora do criador e da criatura pode ser pertinente, e a criatura não apenas assume vida própria como, na adolescência, pode se voltar contra um genitor que reclame uma obediência talvez restrita demais e quem sabe pouco legítima.

A independência inegociável do ethos liberal quanto à sua suposta paternidade religiosa tornou-se evidente a partir da revolução sexual (não é por outro motivo que foi o sexo a ocupar o centro do debate recente no Brasil, enganosamente sobre arte contemporânea). E cabe bem falar de revolução para retratar esse momento dos anos 60 - revolução no sentido tocqueviliano, de uma transformação maior nas mentalidades que leva de roldão a todos, refratários ou não, talvez irreversivelmente. O tempo só tratou de tornar seus resultados parte inalienável das liberdades modernas. Provavelmente, somente algumas franjas extremas de movimentos conservadores pregariam hoje o abandono massivo do mercado de trabalho pelas mulheres e seu retorno à realização exclusiva como mãe e esposa no lar. Nos anos 80, aproveitando-se da onda homofóbica promovida por Margaret Thatcher (com a seção 28 do Local Government Act de 1988), Roger Scruton podia sugerir uma assimilação da homossexualidade à perversão; nos anos 2010, ele retira o que disse, proclamando que "a busca pela igualdade gay é nobre e correta" (ao mesmo tempo em que, um tanto surpreendentemente, rechaça o casamento homossexual).

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Ainda que inspirada em parte pela esquerda, a revolução sexual representou, à revelia dos seus instigadores, a última fronteira do liberalismo. O trono e o altar já haviam tido contestada sua legitimidade intrínseca quanto à relação econômica e à deliberação política; faltava que sua intromissão na vida íntima individual aparecesse como um arbítrio insuportável. No século XIX, um romance como Madame Bovary podia ser processado na França três vezes pós-revolucionária por ultraje à moral publica e religiosa, como se as aventuras de alcova dos cidadãos (e sobretudo as das mulheres fora da alcova dos seus maridos) fossem assunto do Estado e da Igreja. Temos por bárbaras as caçadas policiais a homossexuais no Egito e no Oriente Médio, mas algo não muito distinto sucedia no mundo anglo-saxão até anteontem. Na Inglaterra, só em 1967 se aboliria a lei anti-gay de 1885, legislação que foi a última a criminalizar homossexuais desde que Henrique VIII, com o Buggery Act de 1533, subtraiu a cortes eclesiásticas a prerrogativa de reprimi-los. Quando não em confluência de espírito com a autoridade estatal nessas ações despóticas, a religião regulava o comportamento sexual dando o tom para que a autoridade anônima do corpo social pusesse em seu lugar qualquer minoritário indesejável.

A um primeiro olhar, a revolução sexual foi a explosão de tendências anárquicas, potencialmente desagregadoras - no Brasil dos anos 70, correspondeu à época do chamado desbunde. Por trás dessa imagem de vale-tudo hedonista, o que se operou em realidade foi uma troca de moralidades, para a decepção dos libertinos. Marcel Gauchet diria talvez que então a ordem heteronômica evoluiu em direção à autonomia, que a lei do Livro (lei da Igreja, lei vinda "de fora" e "de cima") encontrou concorrência de uma lei por assim dizer pactuada entre os indivíduos, imanente à vida social. No lugar dos antigos interditos religiosos que recaíam sobre algumas práticas sexuais, surge a ideia do consentimento esclarecido como nova medida de moralidade de qualquer prática. Esse consentimento esclarecido é o triunfo do liberalismo na esfera íntima: não é no assentimento entre indivíduos livres e iguais que já se situava a moralidade das trocas comerciais e da escolha política? Talvez essa nova moralidade seja até mais férrea do que a antiga moral religiosa: ela se propõe a vigorar "de dentro" para "fora", a partir do âmbito estrito da consciência individual. Ela já conta mesmo com seus puritanos: a importância do esclarecimento é tão avassaladora no mundo pós-68 que, nos Estados Unidos, discute-se seriamente em alguns meios queer se o uso de álcool ou entorpecentes antes do ato sexual não conspira a caracterizar a este último como estupro.

Ao mesmo tempo, a busca de consentimento esclarecido explica por que, em uma sociedade sexualmente liberalizada, nunca a rejeição não somente à pedofilia e ao assédio sexual foi tão unânime e eloquente, mas igualmente à infidelidade: se a relação monogâmica não basta, qualquer prática heterodoxa é permitida conquanto livremente pactuada pelos interessados, no respeito de uma sacrossanta transparência e honestidade de propósito. Também, os grandes medos conservadores de que o casamento gay fosse seguido pelo matrimônio com espécies animais ou vegetais ou mesmo com objetos inanimados se mostraram até agora vãos; nada indica que cães, cactos e batedeiras poderão proximamente manifestar assentimento, por esclarecidos que sejam.

Com isso, a moral sexual cristã não se tornou marginal, apenas se converteu em uma opção entre tantas - e, entre os citadinos dos grandes centros, uma opção talvez algo exótica. Ainda que um regime de verdade universal, e de verdade universal expansionista, o cristianismo teve de se acomodar a um lugar importante, mas não mais central, na cité liberal, pluralista por definição. Isso explica em parte o incômodo de cristãos conservadores com a extensão de direitos a minorias sexuais socialmente inofensivas, mas pecaminosas frente a uma lei divina que escapa à ordem civil. A máxima desses cruzados é non ducor duco, e qualquer ganho real para o outro lado surge aos seus olhos como uma derrota simbólica, ainda que em nada impeditiva a seu modo de vida. Frente a essa situação, o cristianismo conservador pode esforçar-se em recosturar a túnica da sociedade para então reinar sobre ela novamente a partir do Estado - é o plano do Islã político, por meios violentos ou não. O cristianismo conservador pode ainda ser como o São Pafúncio de Anatole France; dando com os ouvidos moucos da sociedade laica, ele se isola em um exílio íntimo, desesperado e superior. Pode, por fim, abandonar-se a uma fecundação reversa pelo liberalismo, buscando viver a mensagem do Cristo a partir de uma sociedade a que dificilmente conseguirá impor os velhos interditos. Uma tal tentativa talvez esteja condenada a ser minoritária; ainda assim, é ela que pode evitar um embate nocivo às liberdades públicas.

Rodrigo de Lemos é professor na UFCSPA (RS) e doutor em Literatura pela UFRGS.

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Para saber mais: 

http://www.teatrodomundo.com.br/por-que-nao-podemos-nao-nos-dizer-cristaos/

 

 

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