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Um espaço para a discussão de ideias para nosso tempo

A (Falta de?) Moralidade do Lucro

Por Eduardo Wolf
Atualização:

por Andrea Faggion

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Em geral, obras de ficção do nosso tempo dão mostra de como se enxerga a figura do empresário em nossa sociedade. Não é nada raro que o vilão da trama seja aquele que lucra. Exceções, sim, são obras como a série "Mr. Selfridge", em que o mocinho é um empreendedor bem-sucedido no mercado. É de se perguntar, então, o que há por trás desse sentimento moral de reprovação ao lucro socialmente compartilhado. Seríamos uma sociedade intuitivamente marxista? Não me parece que seja o caso.

O fenômeno de reprovação moral do lucro é digno de análise porque, em si, o lucro é uma manifestação de um bem que se faz à sociedade. Por exemplo, como eu poderia lucrar vendendo fatias de bolo? O lucro só seria possível se as pessoas estivessem mais interessadas no meu bolo do que estavam interessadas em comprar ovos, farinha, leite, manteiga, gás de cozinha... e até outros serviços que eu poderia prestar enquanto estava ocupada fazendo o bolo. Quer dizer, o bolo só é lucrativo para mim na medida em que ele representa, para o comprador, mais do que a simples soma de seus ingredientes e meus serviços. Em suma, eu lucrei com o bolo porque acrescentei valor à nossa vida comum.

Seria, então, o lucro tão mal visto, porque, se eu contratasse alguém para me ajudar, eu estaria explorando a mão-de-obra de outra pessoa? Possivelmente, eu seria moralmente reprovada por um espectador imparcial educado em nossa sociedade se eu contratasse alguém que estivesse em situação de emergência e oferecesse apenas o suficiente para salvar essa pessoa da agonia de padecer da insatisfação de suas necessidades mais básicas, sendo esse valor ofertado por mim também menos do que eu, normalmente, ofereceria por aquele mesmo serviço. No mais das vezes, parece-me ser assim que se emprega a palavra "exploração" nestes contextos. Explorar significa tirar vantagem do mal que acomete a outro, procurando maximizar o próprio benefício e minimizar o do outro. Mas não me parece que todas as relações trabalhistas sejam majoritariamente vistas dessa forma em nossa sociedade. Qual seria então a origem da reprovação intuitiva e praticamente generalizada ao lucro?

Nem sempre a melhor forma de esclarecer uma intuição moral é perguntando por sua razão de ser a quem a sente. Uma intuição ou um sentimento moral, afinal, se caracterizam exatamente por não serem a conclusão de argumentos. Ademais, muitas vezes, a pessoa que sente não sabe exatamente o que reprova, podendo muito bem confundir o traço objetivo do fenômeno que dá origem à sua reprovação subjetiva. Porém, fazer algumas perguntas ao portador do sentimento ou intuição não deixa de ser instrutivo. Nesse processo, tenho aprendido que as respostas costumam apontar, não para o lucro em si, mas para sua medida. Acredita-se que o lucro deva ser visado, mas que ele não poderia passar de certos limites.

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Ora, isso não se esclarece com a singela explicação que demos acima para o lucro, com base na diferença entre custos e receitas em uma planilha. Pelo contrário, nossa explicação sugere que, quanto maior o lucro, maior o bem provido à sociedade, isto é, quanto maior o lucro, maior a diferença entre o valor que se retira da sociedade para produzir o bem e o valor que se devolve a essa mesma sociedade na forma desse bem. Esta reflexão sugere que a compreensão da reprovação moral do lucro compartilhada por tantos não deva passar por uma simples explicação do conceito de lucro, mesmo somada à noção de uma medida. Precisamos olhar mais longe e perceber que juízos de valor moral não são juízos (exclusivamente) pautados por cálculos de eficiência.

Para entendermos um juízo de valor moral, temos que entender primeiro a tão clássica quanto polêmica diferença entre valores intrínsecos e valores instrumentais. Um bem tem valor meramente instrumental quando serve apenas como meio a algum outro fim diferente dele próprio. O valor intrínseco, por outro lado, consiste em algo ser um bem por si mesmo, independentemente de suas relações com outros bens.

Desnecessário notar como o último conceito é o que nos envolve em uma série de dificuldades filosóficas, dando ensejo a uma multiplicidade de teorias a respeito das marcas características do valor intrínseco e até mesmo de sua possibilidade. Seja lá como for, valores intrínsecos são pressupostos em juízos (pré-)morais do senso comum. Em geral, nosso observador imparcial compreende aquele que coleciona obras de arte, mesmo que o colecionador jamais pretenda outra coisa que não a contemplação de sua coleção. Mas o mesmo observador reprova um acumulador de lixo, pensa que esse acumulador deveria buscar tratamento, e isso mesmo que o montante de prazer obtido pelo acumulador com sua atividade seja equivalente ao montante de prazer obtido por aquele colecionador. Em suma, pessoas que fazem juízos de valor (moral) aplicam valores intrínsecos, e não apenas valores instrumentais.

Como essas considerações esclarecem analiticamente o juízo daquele que condena o lucro para além de certo limite? Razoavelmente, o que se pode condenar é apenas o menosprezo, ou até a destruição, de valores intrínsecos na busca por algo que apenas representa à perfeição o valor instrumental: o capital financeiro. O limite que se deve ter em vista, nesse contexto, não é uma quantidade que não deve ser ultrapassada, mas um valor intrínseco que não deve ser sacrificado em nome de um valor instrumental.

É verdade que o sentimento moral anti-lucro tão comum em nossa época pode tomar formas marxistas ou ser simplesmente destrutivo da eficiência, quando mal esclarecido pela razão. Contudo, quando bem entendido, esse sentimento indica apenas que devemos ter em vista que a alocação eficiente de recursos materiais não é um fim em si mesmo, mas um meio que deve servir ao maior florescimento da natureza humana. É assim que podemos reprovar a obsessão de um tio Patinhas, que acumula capital financeiro apenas pelo prazer maníaco de nadar em moedas, mas podemos louvar todo o incentivo às artes e às ciências, bem como o combate à miséria, por exemplo, que se tornam possíveis pelo mesmo acúmulo de capital. O lucro, bem entendido, não é o vilão. Em si mesmo, ele é neutro. Não tem valor em si. Além disso, se quisermos fomentar qualquer coisa que tenha valor em si, é bom não nos esquecermos que, antes, alguém precisa lucrar, e muito. Pense nisso na próxima vez que seu programa de TV favorito sugerir que lucrar é, simplesmente, coisa de gente malvada.

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Andrea Faggion é doutora em Filosofia pela Unicamp. É professora de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL)

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