Mas a agitada convivência com as ciências sociais e a antropologia não o deixam afastar-se, é claro, dos temas ligados à sociedade - em especial, a segurança. Tanto que ele inclui, entre suas missões, ampliar o debate sobre a PEC 51, que trata de mudanças na estrutura do modelo policial brasileiro. "As UPPs estão em ruínas", alerta. Ao levar jovens pobres de periferia para a cadeia, "estamos contratando violência futura" - pois ao sair eles estarão, aí sim, "prontos para a criminalidade". Uma de suas propostas: "Que não haja Polícia Militar" e que se adote "o ciclo completo" - ou seja, policiais atuando "desde o patrulhamento à investigação".
Dedicado, atualmente, à tarefa de porta-voz da Rede Sustentabilidade, Soares avisa: não pretende mais assumir cargos políticos. Mas continuará carregando a bandeira por uma profunda reforma na segurança pública e para que a Lava Jato não seja obstruída. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Seu novo livro trata de sua juventude, do regime militar, da experiência no PT, de episódios que envolvem prefeitos, administradores e até traficantes. São todas histórias reais ou há ficção?
A estrutura narrativa é análoga à da ficção, mas não há ficção nas histórias. É claro que, para viabilizar alguns relatos, tive que trocar nomes ou suprimir informações. Mas, sempre que possível, tentei evitar isso.
O que o levou a adotar essa estrutura, sem se aprofundar em análises, como tem sido comum em sua obra?
O projeto do livro era alcançar um público amplo, não acadêmico, e falar sobre a cidade de uma forma mais original. E também atrair o público internacional. Meu desafio foi inscrever na própria narrativa o elemento analítico.
Seria uma tentativa de retorno aos seus primeiros projetos, quando optou por fazer Literatura na graduação?
Explicitamente não sei, mas inconscientemente sim. De um lado está o interesse por me comunicar com um universo mais amplo de leitores, uma audiência internacional. Do outro, é uma oportunidade de exercitar a narrativa, ainda que, nesse caso, com o compromisso com o realismo. A ideia é mostrar o Rio de Janeiro por um mosaico que indique aos leitores esferas diferentes da cidade. É, sobretudo, uma guerra contra o clichê. Porque, é preciso vencer a ideia da "cidade maravilhosa", que circunscreve a experiência do Rio como se fosse uma blindagem contra uma imersão um pouco mais crítica.
No livro, você diz que as UPPs ajudariam a modernizar o tráfico de drogas. Por quê?
Quando elas existiam e funcionavam, poderiam ajudar a modernizar o tráfico porque impediriam o domínio territorial por parte do tráfico armado. Assim, o tráfico teria que agir como na maioria das partes do mundo: ao invés de controlar um território, formar um exército, investir na coesão interna e no confronto bélico para manter o domínio territorial, funcionaria no varejo nômade sem necessidade de uso de armas e domínio territorial. As UPPs empurrariam o tráfico para uma posição mais racional e isso teria indicações positivas até do ponto de vista da segurança porque teríamos menos morte, menos armas, menos violência. O que teríamos seria um comércio ilegal.
Por que você se refere às UPPs no tempo passado?
Hoje elas estão em ruínas. É um projeto fracassado porque as polícias continuam as mesmas e os resultados são previsíveis, por mais bem intencionados que sejam.
Você foi secretário nacional da Segurança Pública em 2003. O que nota de avanço e de retrocesso na área desde então?
Houve experiências importantes em Minas, em Pernambuco, no Rio. Mas elas continuam sendo exceções e o que predomina no Brasil nessa área é a estagnação. Essas boas experiências são sempre iniciativas contra a corrente, que procuram minimizar os malefícios decorrentes do modelo policial vigente. A rotina ditada pela institucionalidade, que aposta no sentido da divisão e do apartamento joga toda as conquistas no ralo. E qual o nosso quadro atual na segurança? É trágico - 56 mil homicídios dolosos por ano, 8% investigados. Temos 92% de homicídios impunes, não investigados. Mas mesmo com esses números não se deduz que o Brasil é o país da impunidade. Esse é o pulo do gato para compreender o nosso quadro na segurança pública.
Como assim?
Por que não somos o país da impunidade? Porque temos a quarta maior população penitenciária do mundo e a que mais cresce nos últimos 13 anos - 640 mil presos em 2014. Mas os crimes mais graves não são investigados. E o motivo é muito simples de compreender: a Polícia Militar está proibida de investigar, mas está na rua e é instada a apresentar resultados. E o que significa "produzir", para a PM? Prender. Mas se ela não pode investigar, como é que prende? Em flagrante. Só que os crimes passíveis de prisão em flagrante nem sempre são os que deveriam ser prioritários. Assim, a PM, para produzir, prende e prende em flagrante. Quem? Jovens pretos e pobres das periferias, negociando substâncias ilícitas. Boa parte deles não praticou violência, não estava armada, não estava ligada a organizações criminosas, mas eles estão entupindo as prisões e se organizando para retornar daqui quatro ou cinco anos - aí sim, envolvidos com a criminalidade. Estamos contratando violência futura. Deixamos de investigar crimes mais graves - como homicídio - porque o modelo constitucional define que a polícia ostensiva é proibida de investigar.
Qual a proposta alternativa?
A proposta é que não haja Polícia Militar. Que haja a desmilitarização e o ciclo completo. Ou seja, toda a polícia que houver cumprirá todas as atividades que pertencem à polícia, do patrulhamento nas ruas à investigação. Hoje, a PM não tem autonomia dos seus membros, não pode investigar, não está regida pela Justiça Civil e não tem as condições para cumprir essa tarefa. Mas não podemos confundir ciclo completo com unificação. A unificação é uma das formas da realização do ciclo completo. A outra forma óbvia é a multiplicação da polícia como há em outros lugares do mundo. Você pode organizá-la por dois critérios: ou por tipo criminal ou por território. Entre os caminhos possíveis para o País, vejo esses. A unificação, em alguns Estados, é insustentável.
Não tenho nenhuma pretensão de envolvimento político direto, senão na formação do partido. Estou envolvido com os projetos dos meus livros e com a promoção do debate e da aprovação da PEC 51.
Como avalia a situação atual do País?
Estamos no fundo do poço, mas a nossa democracia tem menos de 30 anos. Uma sociedade de baixa escolaridade, que não tem a tradição do debate público inclusivo, cujas instituições democráticas são recentes... É um processo de construção. Temos que ter a perspectiva histórica. Pode não ser para a nossa geração, mas devemos continuar apostando na viabilidade de democracia brasileira. Eu, que participei da luta contra a ditadura, tendo a ter uma visão mais otimista. O pessoal da minha geração, que participou da luta clandestina e viveu aquele horror, não tem uma percepção do quadro atual tão obscura e depressiva, já vivemos situação que é infinitamente pior. Quando falam hoje "o Brasil nunca viveu...", a pessoa não tem ideia do que foi a hiperinflação, que foi a ditadura, do que era censura. Não vivenciaram isso no cotidiano. A sensação de desespero é capaz de aniquilar os ânimos. Dos meus oito amigos de juventude, sete morreram tendo cinco deles enlouquecido antes, por motivos da ditadura. Para quem viveu aquela época, o processo de construção democrática por mais difícil que seja, é fundamental.
Que tipo de saída imagina para a atual crise política?
Minha bandeira é preservar a Lava Jato. Temos um momento de inflexão na história do Brasil. E qualquer "acordão", qualquer esforço no sentido de obstruir a Lava Jato e acabar com esse processo deve ser combatido com toda a energia. Se há o caos e a crise, por outro lado há a Lava Jato. Esse é um fato histórico e tem uma implicação importante. Os pobres e os que conhecem a desigualdade nunca acreditaram na Justiça e na ideia de igualdade porque isso nunca ocorreu no Brasil. A polícia funciona para prender os pobres, os presídios para abrigá-los. É a marca da nossa história. E, nesse momento, temos a iniciativa da Justiça e da Polícia Federal que intervêm nas esferas do poder - algo inusitado e extraordinário. Haverá uma cisão do País - antes e depois da Lava Jato. Esse momento é decisivo. Preservar de todas as maneiras esse processo é a brecha, a pequena escotilha que pode nos fazer ver um futuro diferente e mais promissor.
Quais os seus projetos para 2016?
Para o próximo ano está programado uma série documental, em parceria com Leandro Saraiva, a partir de um livro meu - que também será lançado em 2016 - chamado O Brasil e Seu Duplo. Nele, trato da História do Brasil em alguns aspectos relevantes - escravidão, migração religiosa, a importância do tropicalismo e das transformações culturais no anos 1960 e suas implicações democratizantes. O livro é base para uma série de episódios documentais que vamos desenvolver ao longo do ano. Também vou lançar o Rio Janeiro - Histórias de Vida e Morte na Inglaterra. E existe um longa, em que sou corroteirista. Dele, só posso dizer que é uma história de ficção que abordará questões relativas à ocupação da Amazônia, à pluralidade religiosa brasileira e a suas implicações políticas.