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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

'A moda é o que está nas ruas, e não aquilo que poucas pessoas podem ter'

Por Sonia Racy
Atualização:
 

Conhecida pela língua afiada, a editora Regina Guerreiro volta à cena com websérie sobre comportamento, arte, tendências - e, claro, moda. E avisa: "Não quero ser mais uma a ditar regras".

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Regina Guerreiro completou 50 anos de jornalismo de moda. Quando começou, nos anos 1960, foi uma das primeiras mulheres a trabalhar em uma redação. Viu Christian Dior e Yves Saint Laurent em começo de carreira, entrevistou Paco Rabanne e André Courrèges e presenciou a célebre cena de Coco Chanel no topo da escada de sua casa, em Paris, observando suas modelos desfilarem. "Chanel era muito amarga", contou à coluna. Em Madri, ainda na efervescente década de 60, também viu uma moça ser apedrejada por usar minissaia. Em São Paulo, na mesma época, ia às ruas para recrutar as meninas que queria para os editoriais - não havia agência de modelos. De risada fácil e língua afiada, Regina participou do começo da indústria e da cobertura de moda no Brasil e tem em seu currículo passagens pelas maiores revistas de moda nacionais, como Vogue, Elle e Manequim. Hoje, é reconhecida como ícone da área no Brasil por seu olhar crítico, apurado, polêmico, intenso. E respeitada por modernizar e ajudar a formar a editoria de moda no País. Aos 74 anos, a jornalista nascida em São Paulo tem uma bagagem sem fim de curiosidades do mundo fashion, afetos - e desafetos -, além de uma soma de conhecimentos de cultura e arte. E é com seu humor ácido, cult e divertido que se prepara para lançar o projeto Enjoy, uma websérie criada em parceria com Alberto Hiar, diretor criativo e fundador da Cavalera, que promete reunir histórias do cinema, da pintura, de comportamento - maus comportamento, segunda ela - e moda. Ela ressalta: "Não é um programa de moda, embora inevitavelmente eu acabe sempre caindo nela". Enjoy vai ao ar a partir de 20 de agosto, no canal do YouTube da marca. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como nasceu a ideia de fazer a série Enjoy? Foi durante um almoço com o Alberto Hiar. Ele gostou tanto das minhas histórias que achou que valia transformar o bate-papo em vídeo. Então, apostou em mim e me deixou livre parar criar os programas.

O que o público verá nos episódios? Cada programa terá um tema. Por exemplo: a vida acelerada de hoje em dia e o medo que as pessoas têm de serem diferentes. No meio de tudo isso, acabo passando um pouco pela moda, que é sempre alguma coisa que me amarra. Mas não é um programa de moda - até porque não dá mais pra aguentar os programas de moda. Eu falo de arte, de cinema, de comportamento, de medos. A intenção é que as pessoas se encantem com todos os assuntos abordados e procurem saber mais sobre eles.

Por que você não aguenta mais os programas de moda? Tem um monte de blogueiras na internet, um monte de programas na televisão, e as mulheres que não são da moda, coitadas, devem estar ficando loucas com tanta informação desencontrada. Não quero ser mais uma a ditar regras.

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Gostou de ser apresentadora? É mais fácil falar ou escrever? Para mim, falar não é um problema, até porque eu dou várias palestras, mas é muito diferente ter de falar em 5 minutos (tempo de duração do programa), porque você precisa seduzir o espectador rapidamente.

Em um episódio, você conta a história de seu sofá em formato de boca, inspirado na atriz Mae West, e acaba falando de moda. Moda é arte? Tem um programa sobre isso. (risos) Essa é uma briga muito antiga, um tema muito contraditório. Cada um fala uma coisa, mas, na realidade, por muito tempo a moda pegou carona na arte - e agora tem até arte pegando carona na moda. Claro que moda pode ser uma obra de arte, mas não é o que a gente vê. Há roupas de Alexander McQueen, por exemplo, que realmente são obras de arte. Agora, a moda atual está longe de ser considerada uma obra de arte.

Você tem algum exemplo? Existe alta-costura? Existe, mas a moda é algo que está na rua, não aquilo que poucas pessoas podem ter. Eu li um artigo que dizia que você pode comprar um apartamento em Madri com o valor de um vestido de alta-costura. Que bom que há pessoas que podem ter essas peças, porque esse é um trabalho que, historicamente, precisa continuar, mas isso é a moda que vai pegar? Estamos muito longe disso. O mundo está se afastando dessa realidade caríssima, feita à mão. Pouca gente quer saber de ficar o dia inteiro pregando pérolas.

Quem ainda te emociona na moda brasileira? O Alexandre Herchcovitch é muito perfeccionista e talentoso. Acho que ele faz roupa especial para pessoas especiais. O Pedro Lourenço, cuja grande qualidade também é o perfeccionismo que ele herdou do pai (Reinaldo Lourenço) e da mãe (Gloria Coelho), é impressionante. Gosto muito da Gloria, porque sempre encontro peças que são a minha cara.

O que te fez escolher a moda como carreira? Não escolhi, caí na moda. Sou jornalista, me formei pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Sempre quis trabalhar na Editora Abril. Um dia, cheguei em casa e tinha uma carta do Luis Carta - isso foi em 1964. Então, comecei a fazer a seção Garotas, na revista Manequim. Naquele tempo, não existia a moda feita no Brasil e eu participei vivamente desse começo. Foi muito emocionante. Quando entrei nas redações, quase não havia mulheres e eu fui repudiada pela minha família. Eles achavam que era uma coisa horrível trabalhar em revista e em jornal.

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E hoje, qual é a sua rotina? Acordo devagar, tomo remédios - porque tive uma depressão muito grande. Estou medicada há quatro anos. Hoje, fico no computador fazendo pesquisas, lendo o que está acontecendo. Passei muito tempo sem ver televisão, agora voltei a ver alguma coisa. Não vou a eventos sociais nem a festas. Eu desapareci do São Paulo Fashion Week, vou a dois ou três desfiles. Vejo todos pela internet. Na verdade, nunca fui muito social, nem quando era diretora da Vogue.

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Qual foi o primeiro desfile a que você assistiu in loco? Trabalhava como correspondente da revista Claudia, na Espanha, e recebi um telegrama do Thomaz Souto Corrêa, jornalista e um dos meus mestres na vida, pedindo para ir a Paris assistir aos desfiles. Vi o Christian Dior, entrevistei o Paco Rabanne, vi e entrevistei o André Courrèges. A Coco Chanel eu vi nos anos 1970, em um desfile em que ela ficava em cima da escada, observando todas as modelos passarem. Ela era uma mulher muito amarga.

Uma de suas características como editora é não ter medo de criticar desfiles e estilistas. Até ganhou o apelido de 'diaba'. Como lida com isso? Sou uma diaba. (risos) Quando comecei, não existia moda. Não existia agência de modelo no Brasil. Eu pegava modelo na rua. Lembro-me de uma vez em que obriguei toda a equipe - fotógrafo, modelos, maquiador - a dormir na minha casa por medo de não acordarem na hora. Tem de ter o pulso de ferro, e eu acho que as pessoas confundiram o que era ser profissional com o que era ser uma pessoa difícil.

Sente falta de ousadia nas críticas de moda hoje? Acho que as pessoas estão muito preocupadas em agradar todo mundo e em serem simpáticas o tempo todo. Não existem críticas realmente lancinantes. As pessoas querem ter uma relação legal, têm medo de coisas que eu não tive. Muita gente deixou de gostar de mim. Esse tipo de jornalismo não quer dizer nada. Falta uma opinião editorial nas revistas de hoje.

No ano passado, você disse que o jornalismo de moda está muito envelhecido e banalizado. Por quê? Acho que o mundo virou um lugar político. Se você não é política, vive perigosamente. Tem de agradar todo mundo e, nessa linha, seus projetos se perdem. Acredito que aconteceu uma nova fórmula de jornalismo.

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Quem trabalha com moda tem um ego maior? Sim, infelizmente. Acho que grandes nomes da moda brasileira que ganharam dinheiro realmente confundiram o que é ser estilista, o que é ser criador. Com a distância entre eles e o resto do mundo, o ego ficou inflado, algo muito constrangedor.

O que você acha da Lei Rouanet financiar desfiles de moda no exterior? Isso é bom para a imagem do Brasil? Acho tão provinciano ficar teimando e falando "moda do Brasil". Não existe mais isso. Existe o mundo. Há coisas que a gente faz aqui que as pessoas adoram lá. Nós estamos dando para o mundo um outro jeito de ser. Essa troca é fundamental, é isso que faz o mundo enriquecedor. Claro que uma peça que você usa lá fora pode usar aqui e vice-versa. Pessoas criativas existem no mundo inteiro, não só aqui. Acho que a gente precisa parar de mostrar o bumbum da brasileira e passar a mostrar a cabeça da brasileira.

Quais são os seus próximos projetos comerciais? Meu projeto é ter minha vida, meus amigos, fazer os vídeos, falar com gente jovem, cozinhar.

Ainda acredita na moda? A moda vai existir sempre e sempre vai morrer muito jovem. /MARIANA BELLEY

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