PUBLICIDADE

'Velho Chico' diz a que veio no 1º capítulo

Por Cristina Padiglione
Atualização:

Sim, já sei que um punhado de gente há de observar o flagrante de resquício de pó branco, com uma nota de dólar enrolada ao lado, sobre uma bandejinha de superfície lisa, adequada para a inalação da dita droga, em plena novela das 9. A militância LGBT dirá: "mas como é que o autor se incomoda com os pais de família que, no sofá ao lado dos filhos, se constrangem com os gays em cena, e promove aí uma alusão à cocaína?". Bem-vindo ao contexto de Velho Chico, folhetim das 9 que a Globo colocou no ar nesta segunda-feira, 14.

PUBLICIDADE

Simples assim: quem não sabe se aquele pó é açúcar, farinha ou sal, não será minimamente afetado pela cena, de modo que ela não há de corromper a ingenuidade de qualquer telespectador menos avisado. De mais a mais, seria um pecado sobrepor a relevância de tal alegoria cênica, imagem montada para dar a dimensão do que era a diversão em Salvador naqueles anos 60, à narrativa forte que se apresenta de cara num primeiro capítulo. E a bandejinha ainda vinha com foto do Tarcísio Meira, como coronel Jacinto, estampando o fundo de superfície lisa.

Também se acusará Velho Chico de botar gente pelada novamente na tela, remetendo inclusive ao desfiles de nus que seduziu a plateia em Pantanal, pela extinta TV Manchete. É que a Manchete, minha gente, acabou, mas a nudez continua sendo premissa inevitável para quem acaba de acordar de uma noite de farra e sexo, amém. Carol Castro se fez ver por um seio e uma nádega, o que só enaltece o valor da mulher que o nosso coronelzinho Afrânio (Santoro) logo estará deixando para trás.

 Foto: Estadão

O autor, afinal, pode ser conservador, mas seus diretores são de uma ousadia inofensível. Nada como o equilíbrio do tal trabalho em equipe. Nudez não pode ser tratada como bicho de sete cabeças. Todos nascemos assim, ora. Há muito mais libido no beijo entre Carol Castro e Rodrigo Santoro, devidamente vestidos, do que nas sequências em que a moça tem sua beleza denunciada pelas câmeras.

Libido, aliás, é palavra de ordem em Velho Chico. Durante o processo de apresentação da novela, o diretor Luiz Fernando Carvalho usou esse termo como elementonecessário para fazer a produção funcionar. A libido não está somente nas cenas de amor, mas especialmente na entrega explicitada em cenas de todo o elenco, sem exceção. O espectador fica embevecido com Tarcísio Meira, para, logo em seguida, derreter-se por Rodrigo Lombardi. Quando acha que viu muito, vem Rodrigo Santoro, Carol Castro, toda a figuração do bar para quem o Capitão Rosa (Lombardi) dá uma aula de socialismo, mais Fabíula Nascimento (que parece sempre uma outra atriz em cada papel) e Selma Egrei... O que é Selma Egrei? É ela o verdadeiro coronel da saga! E então, já extasiada com tantas interpretações de gente capaz de entregar a alma ao personagem, a Deus ou ao diabo, o que for, vem Chico Diaz - pleno, perfeito, irrepreensível.

Publicidade

 Foto: Estadão

Mais audacioso do que exibir bandejinha de cocaína na faixa nobre foi abrir o capítulo com figurantes da terra, de verdade, em seu dia a dia à beira do São Francisco, o verdadeiro protagonista da saga de Benedito Ruy Barbosa. Antes de fazer desfilar os medalhões do cast, o diretor se permitiu ainda dedicar bons minutos a uma encenação de teatro de bonecos com a índia cujas lágrimas, pela perda de um grande amor, teriam gerado o próprio rio. Em tempos em que programadores se estapeiam para evitar o zapping de canais, foi poesia pura, daí ousada por demais.

A seu favor para tanto, ele tem um capítulo que já apresenta sua história de cara, em torno das expectativas sobre Afrânio, o protagonista. É tudo que não foi possível fazer com as duas novelas anteriores. Babilônia e A Regra do Jogo prescindiam muito mais de exibir seus protagonistas na estreia, do quepropriamente de prenunciar seus enredos.

A trilha sonora e a trilha incidental, de Tim Rescala, com graves e agudos, altos e baixos, de acordo com o suspense da sequência - vide o duelo, maravilhoso, entre Tarcísio e Lombardi - fazem do capítulo um telefilme, status que Luiz Fenando já alcançou no início de Renascer e O Rei do Gado, ambas de Benedito. A diferença é que Velho Chico foi produzida em prazo muito mais curto.

Oxalá a fotografia, o texto e a direção de atores inspirem a concorrência. A execução instrumental da Oração de São Francisco, logo no começo do primeiro capítulo, é um convite irresistível aos fiéis que procuram a reciprocidade de quem dá para receber e perdoa para ser perdoado.

E há, sobretudo, um rompimento brusco entre a aceleração do Jornal Nacional e as águas mansas do rio, a seguir, no início da novela. Se a Globo queria convidar o espectador a relaxar, o recado é claro.

Publicidade

 

FOTOS: CAIUÁ FRANCO/DIVULGAÇÃO E REPRODUÇÃO

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.