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Uma antena no focinho em 'Cachorro Enterrado Vivo'

Ao considerar a animalidade do ser humano, por vezes, há um certo distanciamento que teve início no reconhecimento do nosso próprio corpo biológico e na consequente diferenciação dos outros animais.

Por Leandro Nunes
Atualização:

Em outras palavras, achamos que somos mais sofisticados que toda a natureza, e o orgulho da espécie humana nos impede de dar o braço a torcer para qualquer primata, golfinho ou mesmo um cão, como o do solo de Leonardo Fernandes em Cachorro Enterrado Vivo.

A memória tem cheiro de terra Foto: Estadão

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Ao longo da nossa história enquanto humanidade, o que se percebe é um comportamento impessoal em relação a natureza, com o objetivo de "dominá-la" -- como a Bíblia denomina -- os outros seres viventes. Aqui, é quase possível resumir o velho testamento em dois mandamentos: I - Se um ser não é parecido comigo, não preciso tratá-lo como um semelhante. II - Se ele é inferior, posso sujeitá-lo.

Nesse sentido, o que funda essa dominação primordial pelos humanos é, primeiro, a percepção de nosso corpo biológico, com seus movimentos e capacidades singulares, e em seguida, a compreensão de que este corpo está destacado dos primatas e do resto do ecossistema. Deixamos de ser os outros e agora somos uma nova invenção no mundo. Os primeiros passos de uma biopolítica ancestral.

A montagem dirigida por Marcelo do Vale vai percorrer tais instâncias subterrâneas ao narrar a história de um cão que foi enterrado vivo pelo companheiro da dona. A dramaturgia desenvolvida por Daniela Pereira de Carvalho perscruta o depoimento de três personagens, engastados por Fernandes.

O texto é separado por blocos de depoimentos e o olhar deslocado do cão é o primeiro a surgir. A dramaturgia lança mão de uma corporalidade poética que desencadeia a movimentação desse animal. O treinamento do ator dedicado à composição da figura animal transborda na cena. Aprisionado por uma corrente, o cão também é escravo de sua própria natureza e da memória, impregnada no focinho.

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Bichos do mesmo pelo Foto: Estadão

Na montagem, a fisiologia surge então como proposta da descoberta do mundo, ou redefinição da realidade, por parte do cachorro. A reorganização se dá em um sistema comunicação própria, que passa por descrever e narrar eventos e sensações tendo o corpo como antena e transmissor, tal qual outras narrativas deslocadas do ponto de vista humano.

Por se tratar da condição trágica de um animal abandonado, esse processo de recepção, conversão e emissão de informações se realiza de maneira atropelada, dada a urgência pela sobrevivência. Por outro lado, pela fabulação, o sotaque corporal do personagem, pontuado pelos latidos, ganidos e os uivos, passa a instaurar sua própria gramática.

Fernandes apóia-se nessa partitura despertada pela memória para expandir os demais personagens. O ator brinca com o próprio sotaque mineiro ao compor a figura cômica de homem que tem a função de enterrar o bicho. O dono do cão completa a narrativa trazendo o seu ponto de vista sobre o desaparecimento da esposa.

Sem grandes surpresas, o homem vai explicar sua atitude brutal, justificada pela dor da ausência e dos recorrentes ataques do cão. Entretanto, a peça posiciona ambas as figuras humanas sob lentes. O estado de suas emoções solicita uma nova percepção do corpo e do ambiente. Experimento de alteridade. E quando isso é alcançado, não é mais necessário especificar homem e animal. São todos bichos do mesmo pelo.

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