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Resenhas de espetáculos, livros e novidades do palco

O meio é a mensagem de 'O Corpo que O Rio Levou'

É difícil pensar o que não cabe no teatro. É complicado considerar um universo de possibilidades estéticas e formais para, então, desconsiderar parte ou um conjunto que não sirva. E não serve para quem/quê?

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Por Leandro Nunes
Atualização:

Em geral, o sentimento de dizer algo pode ser uma motivação à mão de dramaturgos e dramaturgas, ou diretores e elenco. Excluir faz parte da criação - excluir o que não se deseja falar - o que não é a mesma coisa que considerar em cena o não dito.

O que se tem, em uma fração bem miúda, é a quantidade de micro discursos que se articulam em um conjunto geral. Pensar em O Corpo Que o Rio Levou parece ser fruto desse encadeamento.

FOTO: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Foto: Estadão

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A obra de Ave Terrena com direção de Diego Moschkovich cria em sua fabulação, uma narrativa inspirada nas pinturas muralistas mexicanas. Pensar na fábula como proposta narrativa que objeta a realidade imprime certa autoproteção ao lidar com as inconsistências trazidas pelo jogo que compreende a trama.

O recorte que extrapola o passado da ditadura brasileira e estende seu legado aos tempos presente e futuro se desprende em imaginação na condução dos diversos quadros. Um casal em crise que detona a montagem de um espetáculo internacional mais a narração de um estranho jogo de futebol são perspectivas que oferecem absurdos formais que contêm a fabulação.

Para além desses quadros que estão a serviço do andamento da narrativa, cada cena também imbrica olhares que retaliam o panorama presente e real da criação artística, da inconformidade com a situação política, que em geral caminham juntas como nunca.

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Com um jovem elenco amparado pela intersecção de artistas estéticos na iluminação e na sonoplastia, o espetáculo abriga nas paredes claras em triângulo com o palco, o olhar da plateia que passeia em perspectiva com o outro. (Até que enfim alguém conseguiu fazer um cenário de metateatro que funciona!) Esse movimento estimula que a fruição da narrativa sempre esteja em relação à outra metade da plateia.

FOTO: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Foto: Estadão

Tem-se a impressão, após a passagem de cada cena, de que é preciso reformular-se enquanto espectador e cidadão da história. Mas isso não quer dizer que a missão é redentora. O tempo habitável pelo casal do banqueiro e da atriz não parece ficar claro, ainda que seja dada alguma indicação em anos, a cena não comunica a utilidade dramatúrgica de instalar ações nesse tempo.

Assim, é o quadro menos acabado, o que é um problema, já que se trata do tempo presente da montagem. Por outro lado, a falta de diferenças estéticas com o ano corrente pode deixar dúvidas de que o futuro que apresentaram é simulacro do atual. Mas se isso se confirmar, faltou honestidade e coragem da equipe para sucumbir com a fábula distópica e escolher posicionar-se objetivamente diante do tempo presente.

Em relação aos outros quadros, é preciso considerar a validade dos jogos. A proposta da partida de futebol funciona mais como esquete, como rascunhos de procedimento. Depois da segunda ou terceira cenas, diminui-se o interesse já que a estratégia formal não consegue aumentar a potência para caber em um espetáculo com duas horas de duração.

O diálogo da montagem de Ofélica Latina e da vida do casal carrega outro vigor, talvez por incluir mais originalidade. A inventividade da narrativa aos reis, a construção coletiva do feminino e a insolência de um encenador estrangeiro tocam com mais risos a realidade. Todas essas incursões, que inspiraram procedimento nas mãos dos músicos, acentuam uma linguagem própria da montagem e da reunião de diferentes artistas. Da mesma maneira, o projeto audiovisual abre sua própria trajetória ao suspender a história, multiplicar personagens e seus interlocutores, e instaurar composições que fogem do apoio a palavra.

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Mas quem diz que só se constrói discurso com as palavras? Um grito de 'Fora Temer!' ao fim da peça, dado pela direção, está aí, para explicar que os 120 minutos de trabalho dos atores (e da plateia) ainda precisam de explicação.

 

 

 

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