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Resenhas de espetáculos, livros e novidades do palco

O embate temporal de 'Casa Apodrecida'

Os anos de 2015 e 2016 para o teatro pareceu descansar os olhos na luta por existir enquanto mulher. Desde a Blanche DuBois na montagem de Rafael Gomes, quanto a de Antunes Filho, passando por montagens biográficas ou inspiradas em histórias particulares, o estado de ser do gênero continua um campo de batalha interno - contra as amarras individuais - e aquelas mantidas pela sociedade. De fato as fronteiras entre uma e outra se misturam, pautadas pela convivência, resistência e permanência do feminino, em um trânsito de muitas mãos.

Por Leandro Nunes
Atualização:

Mais recentemente, a Oficina Cultura Oswald de Andrade recebeu a estreia de Casa Apodrecida, uma passagem por Primo Basílio e Madame Bovary. A escolha por explorar o universo de Luísa e Emma já se enfileira nesse eco de insatisfação, pautado pelo desgaste entre o desejo e a ilusão concreta transfigurada de realidade.

Frenesi - Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

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São mulheres com a energia de vulcões, diferentes no ritmo, na potência, mas detentoras de possibilidades, promovidas de maneira irreversível. Na montagem de Leonardo Bertholini, captar esse espírito possibilitou aos atores que segassem as palavras a fim de colher um alfabeto do corpo. Apesar de duas cenas cantadas em língua estrangeira, o espetáculo expande a percepção a relação de Luísa (Nathália Côrrea), esposa de Jorge (Marco Biglia) e Basílio (Vandré Silveira) para um trabalho corporal.

Em geral, a movimentação perpassa a reprodução de uma rotina, em execução arrochada, contida. O elenco saboreia as ações do início ao fim e exige reações. Esse diálogo físico acontece, entretanto, parece haver, entre alguns atores, a necessidade (ou vício) de uma emular/ilustrar as reações na face. Como se o rosto fosse o ponto final de uma frase. Não que o rosto não integre o conjunto de possibilidades, mas por vezes, quando é ativado expressa que a corpo, enquanto criador de imagens, não é o bastante. Outros sons guturais sugerem o mesmo.

Pode ser também que se trate da própria natureza das personagens, ou da ambientação. Se a época da obra não contém uma experiência contemporânea, é preciso rivalizar a cena. Ao extinguir a palavra falada assume-se que a comunicação verbal é uma forma limitante, ou que o corpo carrega o poder de gerar imagens exclusivas embora também limitantes - e que essa exploração é capaz de instaurar outras conexões atemporais. É o momento em que se parte dos escritos de Eça de Queirós, em 1878, até nos alcançar. Não é tarefa fácil, tampouco atraente.

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Luísa - Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

De outro lado, a inquietude e delírio são alcançados na primeira e últimas cenas. Os corpos frenéticos entoam um coro fantasma do nosso presente. Humano de tanta ilusão inflamada. Talvez seja este o ponto de onde se quer chegar. O que temos então são dois caminhos paralelos que precisam deixar de existir, e se tornarem um. Tempos opostos que não se excluam no palco, tampouco se anulem.

Isso porque o embate das personagens já é setorizado demais - mulher-branca-rica, empregada-pobre, homem-sedutor. Essas definições não podem, ou não deveriam suplantar a entidade do tempo, o período entre a questão trazida na obra e nós. Isso contribuir para resgatar a força da obra - a motivação de pensá-la para o palco -  junto a necessidade de concretizá-la no presente. Talvez a chave seja criar um a ponte que nos faça querer derrubar a própria ponte.

Fragmentos desse encontro explosivo se traduzem na cena dentro do Paraíso, Silveira e Nathália. Um ritmo que se abandona, um fluxo em direção a solidão. Juntos, a cena encabeça a montagem por conseguir combinar as potências do tempo, do movimento e do espaço. Luísa vai da insegurança ao prazer ao lado de um Basílio nobre e selvagem. Gestos de Luísa como ao ser servida com chá são signos simples e potentes indicativos de quem a personagem é. Silveira vem na força contrária de 'O Homem Elefante'.

Como um véu - Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

A questão de construir essa comunicação particular é obtida também com o comportamento da Juliana (Bianca Fernandes). Seu esforço deve ser superior, já que seu corpo está oculto por um figurino que se confunde com o escuro do palco, livrando apenas metade dos braços e o rosto. Na cena de sua morte, há dificuldade em criar esse vocabulário. O movimento de giro e o grito, junto com a queda é destemperado e não enriquece a comunicação anteriormente construída, uma vez que não se reconhece o gênero, ou permita conexões, com outros, como o tragicômico.

A intensidade do jogo entre Camile Bonnenfant e Nathalia pode ser um guia, ao deixar 'sequelas' em Luísa, centro da trama. A cena da música e das uvas estende sua energia de transformação sobre a personagem como se puxa um véu, mesmo após a saída de Leopoldina. Ela altera o estado da mulher e inspira evolução irreversível. São encadeamentos como estes que favorecem o crescimento. Ao não se bastar em conectar a narrativa, eles crescem em porosidade exigindo que as personagens reformulem suas ações e interesses.

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Por último, a trilha de Ricardo Garcia oferece mais um desafio. Quem detona o que? Quem dispara a cena? A trilha, os personagens, suas entradas, suas ações? A escolha não precisa ser absoluta, porque há momentos em que a trilha não é entendida como suporte, mas como uma nova cor, uma nova palavra. Por outro lado, perde-se ritmo quando a movimentação dos atores depende dela ou quando pretende ser fundo dramático, pois parece servir para calçar a performance dos atores de maneira confortável demais e revelar, antes da hora, a conclusão de suas ações.

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