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Resenhas de espetáculos, livros e novidades do palco

'Bicho' é o espetáculo que São Paulo não conseguiu fazer

É muito comum no Brasil, em geral, e na tradição na América Latina, um teatro engajado que costuma denunciar injustiças com minorias e contra um sistema capitalista e altamente repressor das diversidades.

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Por Leandro Nunes
Atualização:

Em São Paulo, o fazer teatral desde o calor da ditadura sugeriu que o palco poderia ser espaço de justiça, ainda que o preço, quase a experiência, estrangule a poesia - debatendo-se em didatismo - ou mesmo a arte.

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Não é fácil dizer mas, repetir manchetes do tipo "O Brasil é o país que mais mata travestis no mundo" não serve muito para justificar a existência de uma peça. Diante da contemporaneidade, a arte exige um recolocação da necessidade de ter algo a dizer, para longe de tentativa de criar comoção a partir de uma estatística.

Se nas duas ou três experiências cênicas isso até funciona, como espectador comum, logo o método será acusado de fetiche ou preguiça. Assim e curiosamente, a distância entre a realidade de país transfóbico com o discurso apresentado se tornará imensa criando uma cratera entre o palco e a plateia, afetando apenas ou pouco os iniciados no tema, que conseguirão sair de lá validando seus códigos e negando a vocação história e social - não necessariamente didática - da arte do palco.

Portanto a contribuição informativa de espetáculo tem limites e repetir-se na forma ou no conteúdo em São Paulo é muito comum e normal. É fácil ser morno a cada turbilhão de estreias. Mas é nesse vão que Bicho dispõe suas raízes. A peça está em cartaz na Cia do Feijão.

. Foto: Estadão

Aqui o exercício abandona as estatísticas para fundar-se num teatro de ideias - muito diferente do teatro de tese. A dramaturgia de André Sant'Anna com direção de Georgette Fadel oferece na precisão das palavras mais dois ou três espetáculos dentro de Bicho, falo mais a seguir.

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A autocrítica e desvelamento existencial dispostos por um garoto de programa surgem como mote quase ridículo com o desejo de artista de teatro sem talento de entrevistar o profissional do sexo. A estrutura narrativa sugere limites já que a fala de Vicente extrapola o conceito de homem, masculino, e gênero - ainda que não diga esta último -, as consciência das personagens não perdem tempo em rascunhar manchetes, e miram em tatear a existência. A fala sincera choca no teatro por não haver correspondente elaborado contemporâneo. O que quase arranha um certo machismo está amparado dentro da proposta, do perfil do personagem, de sua existência.

Aqui a relação da arte com a realidade importa. A mediocridade do artista e de suas perguntas provocam desapreço e até mesmo vergonha de ter um artista retratado em cena. Seu corpo "travadão" não inspira poesia. É impossível apreciá-lo, porque não há tempo a perder para Vicente. O ator é magnético em cena. Voz e corpo vibram como há muito não se vê em atores de São Paulo. Ele é o eixo de um desejo real amparado por uma pulsão que inexiste no ator personagem com quem contracena. Ver-se celebrando a genialidade de um garoto de programa diante de um desprezível representante do teatro causa uma estranha sensação em paradoxo para quem está na plateia, pra quem é artista. A combinação torna o teatro numa armadilha positiva, que aprisiona o público na catarse de sua própria iniquidade.

Por assim dizer, aqui já temos um espetáculo. Exceto pelo desfile da trilha sonora, com suas Bjorks e Babys do Brasil. É difícil não gastar tempo observando a mesa de som, não celebrar o inusitado, que acrescenta autoironia, coisa de quem trabalhou junto desde o início, e que vai na contramão de grandes produções com suas trilhas medíocres enlatadas - não estou falando dos musicais - mas o teatro médio paulistano que coloca trilha na última semana antes da estreia e pede para o ator se mexer. Em grandes momentos é preciso escolher entre ouvir a trilha ou prestar atenção nas vozes. Isso é um elogio, porque sobra qualidade de investigação.

 Foto: Estadão

Há um eixo performático, na presença da travesti e com a chegada de mais alguém vindo da plateia. Aqui também não é preciso ser didático, introduzir políticas sociais antes da poesia. Mesmo assim, a dignidade do palco é levada em conta quanto o aparte sobre o desemprego e o preconceito vem do lado da plateia. O jogo social extrapola o desejo de fazer justiça, sem negar a realidade que recobre as figuras. Elas são o são, elas não mentem e são irresistíveis. O canto, a voz, o corpo amadurecem as ideias antes apresentadas. A sereia em metamorfose descansa os ouvidos. O princípio da religião sucumbe ao ímpeto do artista. O corpo social inspira a hibridez incapturável da realidade.

Na reviravolta, o artista tem seu momento, ainda que se inicie em um princípio de fadiga na cena - o que disse anteriormente sobre mais de um espetáculo contido em Bicho. Seu esgotamento mira mais um vez o homem, o humano, a arte, a hipocrisia. O vômito potente se tornaria um pouco mais valioso se a maratona não se estendesse superando as camadas outrora propostas. Ele chega a esvaziar, emburacar, mas termina um uma escuridão sem tanta importância, que dificulta a parte de terminar uma peça. Também surge desconectada e injustificado na encenação a beleza brilhante dos figurinos dos santos. Parece ideia que sobrou para outro trabalho, mesmo tão bem acabada.

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O desconhecimento da produção de Bicho, com sua equipe carioca, sugere um frescor que passa longe da burocracia dos editais. Essa rotina de artistas virarem noites na frente de computadores preenchendo requisitos e planilhas, como funcionários de escritórios, por vezes, leva as piores olheiras para a cena. Por outro, os trabalhos de muitos grupos tem como única chance de viabilização essa dinâmica ambígua. Bicho lembra a exuberância dramatúrgica suja que habitava os buracos dos teatros nos primórdios da Praça Roosevelt, que hoje só regurgitam uma estética a partir de desinteressantes corpos nus sem ideias. Ter a pulsão domada é quase ordem por aqui. A esperança é condecorada a direção de Georgette. Não se cansem, por favor.

 

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