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Música clássica decodificada

Carnaval dos Animais

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Por Alvaro Siviero
Atualização:

Le carnaval des animaux, obra do compositor francês Camille Saint-Saens (divertidamente utilizada pela Disney no cartoon Fantasia), foi proibida de ser publicada em vida pelo próprio autor, temeroso de que ela arruinasse sua reputação de compositor sério. A peça composta para dois pianos e orquestra, sub-dividida em 14 partes, e escrita quando o compositor passava férias na Áustria (fevereiro de 1886 ), é uma verdadeira provocação, uma sátira musical que não se refere somente aos "animais" citados mas, igualmente, à caracterologia humana. Isso mesmo. Quem nunca conheceu gente "pavão"? Quem nunca se deparou com "raposas" (e das velhas)? Quem nunca esbarrou em um camaleão?

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Os romanos, na sua paixão pelo belo e pelo autêntico, admiradores das expressões artísticas perfeitas e genuínas, não admitiam defeitos nas obras de arte. Por isso, quando um escultor falhava, dissimulava-se o defeito cobrindo a irregularidade com cera. Quando a estátua saía perfeita de suas mãos, aí sim, dizia-se que a obra estava completa, íntegra, autêntica, sine cera - "sem cera". O homem sincero é, sempre, um homem sine cera. E são muitos os truques que podem ser utilizados para encerar a verdade:  as modas (você sabia que a moda da gola alta surgiu para encobrir um terrível defeito que Ana Bolena possuía no pescoço?), cosméticos, perucas, operações plásticas, sem falar nas omissões, exageros e meias-verdades.

O carnaval, sob a ótica do tripé samba-suor-cerveja, pode igualmente evidenciar a cera que muitos foliões depositam sobre suas diversas cicatrizes. Um anestésico que os faça sair fora da realidade, nem que seja por quatro dias. É a humilde atendente do serviço público que se transforma, durante esses dias, em princesa, rainha, ou fada. É o Zé-Pedreiro que se transforma em Luís XV. Mas o carnaval termina um dia, numa quarta-feira qualquer, e a atendente trocará seu vestido de princesa por um avental, e o Zé-Pedreiro deixará as calças de cetim brilhante para vestir aquelas outras, esbranquiçadas e gastas, com as quais ganha honestamente o pão de cada dia. A mesma cera - tudo em nome da alegria - encontra na farra da bebida e do sexo fácil a comprovação da ausência de sentido de comprometimento e verdade nos relacionamentos. Parafraseando Saint-Saens, surge o Carnaval dos Animalescos. Vende-se a casca. Como afirmou o filósofo Kierkegaard: "A tua função principal é a de te enganares a ti próprio, e parece que o consegues, porque a tua máscara é das mais enigmáticas". Sem dúvida, a máscara é mais fácil de ser elaborada do que uma personalidade verdadeira. O recado do Le carnaval des animaux vai, sim, muito além do meramente musical.

Leões, galinhas, cangurus, tartarugas misturam-se nesta obra cômica. O Cisne - único trecho publicado, com permissão do autor, ainda em vida - ganha destaque no conjunto da obra (já presenciei a obra até em casamentos). O Finale (recolhido no vídeo abaixo elaborado pela Disney Studios) transforma-se em resumo dos elementos expostos durante todo o desfile dos animais. Os Pianistas - que está mais para Aprendiz de Pianistas, e que sempre me divertiu - carrega uma sutil e fina ironia, com seu claro recado àqueles que assim se denominam.

 

Catálogo completo da obra 0:05 Introdução e Marcha Real do Leão 0:34 Galos e galinhas 2:22 Hemiones (animais velozes) 3:56 Tartarugas 6:35 O elefante 8:17 Canguru 9:24 Aquário 12:04 Personagens de longas orelhas 12:50 Cuco 15:34 Aviário 17:04 Pianistas 19:38 Fósseis 21:21 O cisne 25:23 Finale

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A Música é linguagem. Cabe a nós sermos capazes de ouvir o que não é dito. Divirta-se e... bom carnaval!

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